Depois de gastarmos 2,80 € na compra do Jornal de Letras e de nos revermos em muitas das opiniões do Paulo Guinote reveladas nesta entrevista, e como o próprio a divulgou no seu Quintal, aqui fica a sugestão para uma boa leitura de fim de semana.
Jornal de Letras, 30/03/20126
JL/Educação: O que o levou a escrever as Memórias da Grande Marcha dos Professores, agora, passados oito anos sobre o acontecimento?
Paulo Guinote: A ideia surgiu a partir de um convite da editora, Bárbara Simões, e de um encontro em que se discutiram várias possibilidades de colaboração. Tive a felicidade de ter sido aceite esta proposta que andava já há algum tempo a interessar-me, até em virtude da ausência de inversão de muitas das políticas educativas que uniram naquele tempo, na oposição à sua implementação, os professores. Quis escrever um livro que desse voz aos participantes “de base” da manifestação e não confrontar os discursos oficiais dos atores institucionais.
Estamos a falar da maior manifestação de professores que já aconteceu em Portugal, com cerca de 100 mil participantes. Esta grande mobilização também o interessou?
Foi um momento singular na nossa sociedade. Quer pela forma como decorreu, desde a mobilização (com grande suporte dos meios digitais) ao seu desfecho (uma multidão ordeira que desagua no Terreiro do Paço para cantar o hino nacional), quer pelo impacto que teve. Interessava-me, sobretudo, preservar a memória desse momento. Publicar um livro que, mesmo com as suas lacunas ou com a clara admissão de não ser um olhar neutral, “lutasse” contra o esquecimento e a truncagem ou manipulação do passado.
Considera que não se lhe deu a devida importância?
Parece-me que é um acontecimento que interessa deixar cair no esquecimento. Além disso, tem-se sublinhado o papel inovador de outras manifestações posteriores – como as que ficaram conhecidas como “Geração à Rasca” ou “Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!” – no que diz respeito ao processo de mobilização em rede de grandes massas. No fundo, tem-se tentado esvaziar o significado singular que aquela manifestação teve naquela altura.
Como recorda esse dia 8 de março de 2008?
Foi a primeira grande manifestação a que fui, de resto só tinha participado em pequenas manifestações locais de preparação para essa. Recordo esse dia como um momento de ansiedade e descompressão. Ansiedade porque não sabia bem o que iria acontecer, apesar dos sinais de que seria algo diferente de tudo o que se tinha passado até esse momento; de descompressão pela alegria e o sentimento de comunhão que cedo se instalou entre gente de todas as zonas do país, origens académicas e situação na carreira.
Como explica tamanha adesão?
Resultou, antes de mais, de um sentimento generalizado de injustiça e de atentado à dignidade profissional de muita gente que, com este ou aquele defeito e independentemente da existência de melhores ou piores exemplos individuais, sempre procurou desempenhar a sua função com brio e profissionalismo. A forma como os professores foram publicamente achincalhados por diversos governantes, de toda a equipa do Ministério da Educação ao próprio primeiro-ministro, a que se acrescentaram muitos ecos na opinião pública, causou uma comoção enorme que se juntou ao repúdio de medidas como a divisão da carreira em duas categorias ou uma avaliação de desempenho que era um monstro burocrático. Em seguida, o facto de tudo isso se ter passado num momento em que os novos meios de comunicação digital estavam a ganhar um enorme impacto na sociedade, permitiu uma partilha inédita de experiências, o estabelecimento de redes informais de contactos por todo o país e uma sensação de pertença a uma classe profissional colocada em cheque perante a opinião pública e os seus próprios alunos.
O Governo que se seguiu, com Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro e Nuno Crato como ministro da Educação e Ciência, foi marcado por uma forte e permanente contestação à política educativa (e não só). Do seu ponto de vista, o que fez com que não tenha existido uma réplica da “Grande Marcha dos Professores”?
Em grande parte, o desfecho daquela manifestação, nomeadamente o Memorando de Entendimento que a maioria dos professores sentiu ter sido negociado à sua revelia. Mas também o desfecho das manifestações que se seguiram até meados de 2009. Houve uma enorme sensação de desânimo, mesmo entre gente que não tinha grandes esperanças em mudanças radicais (como é o caso de vários professores que responderam ao meu inquérito). Apesar disso, verificou-se em 2013 uma greve às avaliações, rotativa, que teve um enorme impacto nas escolas, muitas vezes organizada de forma espontânea (embora beneficiando do pré-aviso de alguns sindicatos), mas que também acabou por terminar a contragosto, em virtude de mais um acordo entre os representantes sindicais e a tutela.
Que ‘herança’ deixou a “Grande Marcha”?
Um circuito de informação entre pessoas que, nalguns casos, nem se conhecem pessoalmente. Quebrou-se o isolamento dos professores nas suas escolas e das próprias escolas, que começaram a comunicar com muita facilidade através de meios digitais (blogues, email, redes sociais, etc.). Criou-se um sentimento e uma prática de partilha de experiências. Isso facilitou, por exemplo, a tal greve às avaliações, em 2013. Há 10/20 anos, as pessoas ficariam em dúvida sobre o que fazer nas suas escolas, sem saber se estariam a ser acompanhadas por outros colegas. Esta comunicação em rede permitiu que a informação circulasse muito mais rapidamente e que se acertassem estratégias para essas greves.
Nessa altura, já tinha o seu blogue ‘A Educação do Meu Umbigo’. Foi a partir de 2008 que a dinâmica da blogosfera docente se intensificou?
Sem dúvida. Entre 2007 e o final de 2008, as visualizações e os comentários aos posts multiplicaram-se. Passei a ter 300/400/500 comentários por post, quando antes tinha no máximo 15. Nesse período percebeu-se também que já havia muitos blogues de partilha de experiências sobre a prática letiva. E depois foram surgindo outros que se dedicavam mais a discutir o que se estava a passar na atualidade e a publicar documentos e informação que pudessem ser úteis para os outros professores.
Parece que essa dinâmica entretanto desacelerou.
Deslocou-se para as redes sociais, sobretudo para o Facebook. Mas em momentos mais “polémicos”, como o actual, em torno da avaliação dos alunos do Ensino Básico, volta a acelerar.
Refere-se ao anúncio que o ministro da Educação fez há poucos dias, dizendo que o novo modelo de avaliação só será obrigatório no ano letivo de 2016/2017 e que este ano serão as escolas a decidir se realizam as novas provas de aferição do 2º, 5º e 8º anos, bem como as provas do 4º e 6º anos. Como vê esta situação?
Com um misto de incredulidade (em especial com a possibilidade de serem feitas as provas “nocivas” do 4º ano) com naturalidade, pois desde o início achei que o novo modelo de avaliação era demasiado complexo para ser erguido em três meses. Sinto ainda algum desgosto pelos truques semânticos como aquele de “devolver às escolas” a decisão de fazer as provas, sendo que a decisão é da responsabilidade única do diretor, após ouvir de forma meramente consultiva o Conselho Pedagógico e nem sequer consultar o Conselho Geral, onde estão representados os encarregados de educação.
Pondo de lado a questão de quando serão introduzidas, considera positivas as provas de aferição do 2º, 5º e 8º anos?
O modelo proposto tem as suas qualidades, mas também apresenta limitações. É interessante que se faça aferição a meio dos ciclos, mas é estranho que depois não se faça qualquer verificação no final desse mesmo ciclo (como acontece, por exemplo, com a prova do 2º ano). Eu preferia que se tivesse demorado mais tempo a implementar o modelo e o mesmo viesse em conjunto com uma reformulação dos ciclos de escolaridade do Ensino Básico.
E o que pensa da eliminação dos exames do 4º e 6º anos?
É uma medida essencialmente ideológica, em especial a do 4º ano, contra a qual podem ser esgrimidos argumentos válidos mas nunca equipará-las, nos seus 30% de peso na nota final, aos “exames da 4ª classe” que eram eliminatórios…
Que ‘balanço’ faz destes quatro meses de trabalho do novo ministro da Educação Tiago Brandão Rodrigues?
Começou por ser favorável, porque anunciou o fim de algumas medidas desnecessariamente polémicas e que causavam mal-estar nas escolas (como a PACC [Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades], a Bolsa de Contratação de Escolas, a mobilidade) ou a reavaliação de outras claramente desajustadas (um ensino “vocacional” desde o 2º ciclo, com escasso sentido numa escolaridade obrigatória de 12 anos). No entanto, tem vindo a passar para um plano mais ambíguo, ou mesmo negativo, com a incapacidade de inverter políticas como a concentração da rede escolar, agravando assimetrias regionais e locais; o modelo único de gestão escolar, do qual a partilha de decisões está quase ausente; ou a incapacidade para dar um sinal de redignificação da carreira docente. A única preocupação parece centrar-se na questão da avaliação externa das aprendizagens, a reboque de uma decisão parlamentar, alegando de forma demagógica que a preocupação central das políticas devem ser os “alunos”.
Porquê demagógica?
Os alunos não ganham nada com escolas que funcionam de forma errada, com uma rede que implica deslocações de dezenas de quilómetros no primeiro ciclo e em que a distância entre os decisores e as salas de aula é cada vez maior. A isto acresce o discurso dúbio acerca da municipalização de competências na Educação e a ideia terceiro-mundista de que a escola deve servir a desregulação dos horários laborais.
Referiu a “incapacidade para dar um sinal de redignificação da carreira docente”. No seu entender, o que importa fazer nesse sentido?
Todos os governos falam na dignificação da carreira docente, só que o conceito de dignificação do governo é diferente do dos professores. Por exemplo, a ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues, que motivou as reações mais violentas por parte dos professores, pensava estar a fazer algo para dignificar a carreira docente. É um conceito esvaziado de conteúdo.Porque aquilo que dignifica uma carreira, seja ela qual for, é o respeito para com os profissionais; a forma como se tratam publicamente esses profissionais; e as condições materiais da sua carreira.
Não houve ainda um ‘sinal’ de mudança nesses aspetos?
Ao longo dos últimos governos, pelo menos desde o primeiro mandato de José Sócrates, poderão ter tido diferenças de estilo no tratamento público da carreira docente, mas em termos materiais e de dar perspetivas de progressão, nenhum deles alterou seja o que for. A carreira continua congelada em oito dos últimos dez anos, sendo ainda sobrecarregada com as sobretaxas… Isto significa uma proletarização da docência. Já em relação ao tratamento público, houve um período mais agressivo, até 2011, que entretanto abrandou. Mas há aspetos negativos que se mantêm.
Tais como…?
Continua sem haver a capacidade de atribuir as boas notícias da Educação ao trabalho em sala de aula. Normalmente aparecem os ministros a dizer que os resultados são fruto de políticas muito bem desenhadas. Em contrapartida, o que é mau acontece ‘por culpa’ dos professores. Isto ainda não mudou com o atual ministro.
Uma das críticas recorrentes da comunidade educativa – e que voltámos a ouvir nos últimos dias a propósito da avaliação dos alunos – é a ‘ausência de diálogo’ por parte do Ministério da Educação. É necessário (re)aproximar “quem decide” de “quem está no terreno”?
É indispensável e não pode confundir-se com reuniões apenas com diretores ou visitas a escolas escolhidas a dedo, onde se sabe que não existirá qualquer contestação a partir da base. Por exemplo, na questão da municipalização apenas há “diálogo” entre “decisores”, ministério, autarcas e eventualmente diretores, sendo que esse é um processo que vai agravar a distância entre os decisores e quem é atingido pelas suas decisões.
É preciso ouvir mais os professores?
Sim. Parece-me que o facto de se ter sublinhado em excesso que os professores eram corporativos e que as suas exigências eram apenas em seu interesse próprio e não dos alunos, fez com que, muitas vezes, os políticos considerassem que entrar em diálogo com os professores era igual a entrar em diálogo com os sindicatos ou com os diretores. Isto, para os professores, é uma grande ofensa. Do ponto de vista formal, os nossos representantes são os diretores e os sindicatos, mas sentimos que a nossa voz de professores em sala de aula raramente é ouvida.
Que mecanismos poderiam ajudar a esse diálogo?
As escolas deveriam poder escolher o modelo de gestão que julgam mais adequado, ao contrário de estarem “reféns” de um modelo único que centra tudo numa pessoa: o diretor. Além disso, existe um órgão nas escolas chamado Conselho Geral, onde estão representados os encarregados de educação, que não é consultado para nenhuma decisão importante. Neste momento, temos um modelo em que a tutela reúne com o seu subordinado nas escolas (o diretor), com quem estabelece uma relação de hierarquia e obediência. É um modelo que raramente potencia o debate e a partilha de decisões. A lógica do sistema é a de uma correia de transmissão de poder e de decisões sempre do topo para a base, sendo que a base (os professores) nunca é ouvida.
Em termos práticos, talvez seja complicado fazer essa consulta alargada?
Concordo. Por isso mesmo deveria começar-se por estabelecer o hábito de reunir todos os professores da escola e envolve-los nas decisões. Não é porque o diretor foi reunir com o ministro que transmitiu o sentir de um agrupamento de 300 professores. O mecanismo de consulta tem que ser muito aprofundado dentro das escolas para que o diretor não seja apenas um representante do Ministério na escola, mas também um representante da escola junto do Ministério.
Quais são, para si, os grandes desafios da Educação em Portugal neste momento?
Há o enorme desafio da estabilidade a sério, desde a escala macro, sendo imperativo que o enquadramento legislativo esteja em constantes reformas de maior ou menor dimensão, à escala micro, pois o trabalho em sala de aula não pode estar permanentemente prisioneiro da reformulação dos programas e metas disciplinares, bem como da eliminação ou recalendarização de provas. Passando pela estabilidade do trabalho dos professores com os alunos, que não pode depender de micro-poupanças de escala na gestão dos horários ou dos apoios prestados aos alunos com maiores vulnerabilidades. Para além disso, seria importante travar e mesmo inverter (não chega reverter) a lógica economicista na gestão da rede escolar, o modelo único, hierarquizado e baseado na nomeação e obediência de gestão escolar, ou a enorme desigualdade de investimento nos equipamentos escolares que faz com que exista uma rede pública a várias velocidades.