Santana Castilho - Público
Num artigo publicado no Observador, Nuno Crato arguiu contra uma afirmação de António Guterres, feita a propósito do seu recente doutoramento honoris causa (“o que hoje fundamentalmente interessa no sistema educativo não é o tipo de coisas que se aprendem, mas a possibilidade de aí se aprender a aprender”), concluindo que “aprender a aprender, em vez de aprender, é o caminho direto para nada aprender, nem sequer aprender a aprender”.
Esta decantada polémica, na qual se projectam sombras negras de Guterres e Crato, é responsável por um erro de décadas, que tem partido ao meio o que só unido pode dar certo. Com efeito, as alterações que o sistema de ensino tem sofrido caracterizam-se ciclicamente por uma divisão de natureza bipolar: ora se hipervalorizam as ciências da Educação, com desprezo pelo valor intrínseco do conhecimento, ora se hipervaloriza o conhecimento puro, com ignorância daquelas. Ora se centra tudo no declarative knowledge(conhecimento “declarativo“, teórico, baseado no estudo dos factos) ora apenas se considera o procedural knowledge (conhecimento “processual“, prático, mesmo que o actor o não saiba explicar, mas tenha “competências”).
Diz Crato, agora e bem, invocando uma das ciências a que outrora chamou “ocultas”, que “a psicologia cognitiva concluiu que as capacidades não podem ser adquiridas independentemente das matérias concretas estudadas”.
Quanto a Guterres, é de pasmar, para quem ainda for capaz de se deixar pasmar, a falta de memória da maioria, apagada pelos feitos internacionais do engenheiro. O gosto pelo diálogo, como forma de controlo dos erros governativos (são dele as primeiras “competências essenciais” e o “estudo acompanhado”), gerou uma lúdica imobilidade, que o levou da “paixão pela Educação” ao “pântano”, de que fugiu, deixando no trajecto, como descoberta sua, políticos (Sócrates e Armando Vara) que reinaram nos labirintos do poder como novos deuses de um Olimpo de subúrbio. Mas acerta agora, quando defende a necessidade de prover os alunos com a capacidade de gerir os seus próprios processos cognitivos, tornando-os aptos para escolherem os melhores métodos de aprender. É disto, afinal, que se ocupa a metacognição, de John Flavel.
Para a Educação, em geral, é tão redutor ignorar o papel e a importância da metacognição como menorizar a precedência do conhecimento factual relativamente ao conhecimento experimental.
Como provavelmente acontecerá com a maioria dos professores, estou farto deste assunto. E há uma boa razão para isso: é que o facto de até agora não ter sido possível enfiar pela goela dos professores de bom senso nenhuma destas posições extremadas, só prova que qualquer delas é por eles rejeitada.
Quanto mais tempo passarem, governos do meio, da direita ou da esquerda, a tentarem alinhar em carreiros separados o que é indissociável, maior será o equívoco de base e a dimensão do erro. Falo de uma espécie de golpe de estado pedagógico, alternado mas permanente, que coloca na clandestinidade os professores de bom senso, os que protegem os alunos, no dia-a-dia da sala de aula, de normativos fundamentalistas e de sequestros ideológicos.
Esta enorme perda de tempo, dinheiro e energias, convenientemente acompanhada por pancadaria verbal infindável, radica na preponderância, na política educacional, do proselitismo sem bases sobre o estudo fundamentado e do totalitarismo pedagógico por etapas sobre a ética e a deontologia docentes. Estas visões políticas, supostamente tendentes a apressarem o caminho do sucesso dos nossos jovens, mais não têm conseguido que moer o juízo dos seus professores.
Há décadas que bato neste teclado palavras para defender os professores daquilo de que ética e deontologicamente discordam e são obrigados a fazer. Falhada cada hipótese de mudança, sobrevém a próxima esperança. Porque o interesse livre dos alunos e dos professores vai sempre à frente do interesse de qualquer dicionário político que os pretenda aprisionar, por decreto, no capítulo das ideologias.