“A erosão da relação não pode ser atribuída a greves e lutas sindicais”
Alguém consegue imaginar um futuro decente em que as escolas não sejam sustentadas, professores reconhecidos e estudantes estimulados? A pergunta está feita.
A Equipa Científica do Inquérito Nacional sobre Condições de Vida e Trabalho na Educação, constituída por Raquel Varela, Duarte Rolo e Roberto della Santa, avisa que é necessário que o Estado analise atentamente o que se está a passar, sob pena de uma “situação potencialmente catastrófica num futuro próximo”. Ficar parado, dizem, “será comprometer o futuro das próximas gerações deste país, em todas as suas áreas”.
Pais, alunos e professores têm interesses comuns. A questão é que se não remarem para o mesmo lado, pouco muda. “Os alunos e os encarregados de educação ainda não estão cientes da gravidade da crise que a escola atravessa, e daquilo que os espera daqui a alguns anos. Se se mobilizassem juntamente com os professores, o protesto ganharia uma amplitude completamente diferente”, sublinha a equipa.
Sem papas na língua e com todas as letras, o grupo afirma que “a atual situação das escolas é feia, porca e má”. E explica porquê: “porque as condições são as de uma verdadeira indigência intelectual e covardia política de governos, parlamentos, Estados”.
E: O país tem um corpo docente envelhecido, a procura dos cursos de formação para professores tem diminuído significativamente. Será possível reverter esta situação?
R: Não só é possível como urgente e necessário. Fundamental e incontornável. Os professores estão muito envelhecidos. O tempo está fortemente correlacionado com o desgaste profissional e o cansaço físico efetivo. É necessária a introdução de um regime especial de aposentação antecipada, por um lado, e, por outro, renovar maciça e progressivamente os quadros, e melhorar suas condições. Mas não é forçosamente uma necessidade para cada um dos professores que têm de ter a hipótese de poder escolher. Mas a necessidade vital e a carência efetiva é a de dar aos professores boas condições de trabalho, que lhes permitam realizar-se, evitando o envelhecimento precoce e o desgaste que observamos. Até porque não existe uma relação lógica, no caso do trabalho intelectual, entre tempo de serviço e desgaste profissional.
Às vezes, aliás, a experiência docente e sua expertise pedagógica pode ser uma bela mais-valia. É importante aqui deixar a nossa posição científica a esse respeito: não acreditamos ser possível estabelecer uma relação direta entre a idade biológica e o cansaço de nexo psico-físico. As razões da exaustão devem ser procuradas sobretudo na organização do trabalho como um todo, inclusive na questão da carreira docente. Finalmente, a atual situação resultará num colapso do sistema em menos de 10 anos, isto apesar da diminuição demográfica. Mais de 40% dos professores estão quase na idade de aposentação, e a redução demográfica do país é muito menor do que esses valores.
É imprescindível que o Estado faça uma análise cuidada, atentiva, de uma situação potencialmente catastrófica num futuro próximo e, não o fazer - por quaisquer razões - será comprometer o futuro das próximas gerações deste país, em todas as suas áreas. É urgente mudar o que está mal, já.
E: E sempre o mesmo problema… Os professores culpam os pais, os pais responsabilizam os professores, os diretores apontam o dedo ao sistema. Porquê, afinal de contas, não se consegue sair deste verdadeiro ciclo vicioso?
R. Não foi, até agora, demonstrada a mínima vontade coletiva para resolver tão grave questão. A montante e jusante acumulam-se problemas. Os media não parecem estar atentos, organizações como a OCDE estão longe de qualquer perspectiva crítica, o governo, não só a assobiar para o lado - até mais empenhado em agravar um quadro já tão dramático, o chamado “mercado” -, como a borrifar-se, já que não se trata de um setor estratégico para a acumulação de capital – a Educação não é uma mercadoria -, e mesmo a população, pais e alunos, ainda não se deram conta da gravidade efetiva da situação.
Neste contexto, já o dissemos, ser professor e não lutar é uma contradição pedagógica. A educação dos educadores, dizia Marx, depende da práxis. Acreditamos que há uma crise - profunda e extensa - de uma práxis emancipatória. Existe um interesse comum para pais, alunos e professores. Mas os alunos e os encarregados de educação ainda não estão cientes da gravidade da crise que a escola atravessa, e daquilo que os espera daqui a alguns anos. Se se mobilizassem juntamente com os professores, o protesto ganharia uma amplitude completamente diferente. Em rigor, trata-se de uma ampla questão pública, muito para além das comunidades escolares.
E: Neste momento, há um evidente braço de ferro entre sindicatos e tutela por causa do tempo de serviço congelado. Há um quadro de greves, ameaças de não atribuir notas, atrasos na fixação dos resultados dos alunos. Estaremos agora a assistir a uma erosão de uma relação social que devia ser a mais tranquila e saudável para não perturbar o bom funcionamento e a missão pedagógica das escolas?
R: A erosão da relação que devia ser organicamente tranquila, harmónica, justa e bela, não pode ser atribuída a greves, lutas sindicais e conflitos sociais. Muito pelo contrário. Greves, lutas sindicais e conflitos sociais, como estudamos através da história social do trabalho, são responsáveis por impor níveis decentes de civilização e cultura. A atual situação das escolas é feia, porca e má sobretudo porque as condições são as de uma verdadeira indigência intelectual e covardia política de governos, parlamentos, Estados. “O sábio aponta para o céu mas o tolo só consegue ver o dedo”, já diz o provérbio.
E: As conclusões do estudo que coordenaram devem ter reflexos políticos, sindicais e até legislativos? O que deveria acontecer? Que mudanças almejam?
R: Desde já, é preciso esclarecer uma questão prévia. Acreditamos que o oficio científico deve ligar-se a questões sociais politicamente relevantes para desenvolverem-se de modo saudável e útil ao público, e à sociedade em geral. Isso é muito importante. Porém, enquanto a solução de problemas sociais implica uma ação que é política, a qual deve transformar a realidade, a resolução de uma questão de investigação científica pode resultar num incremento dos conhecimentos sobre determinado assunto. Ambos podem, e até devem, estar relacionados. Mas não são, evidentemente, uma só e mesma coisa. Corre-se o risco simétrico, caso confundamos ou separamos as duas instâncias, de, por um lado, termos uma ciência “livremente flutuante”, descolada da realidade à qual deve responder, ou, por outro, uma espécie de ciência social a reboque de situações e agendas externas às regras próprias ao trabalho científico, ao pior estilo da “engenharia social” com a qual o positivismo sempre sonhou.
É muito importante reafirmar a autonomia entre ambas as esferas, até para que a ciência não venha a ajoelhar-se no altar de mercados ou Estados. Dito isso, a política deveria fiar-se mais na ciência. Este país formou quadros técnicos e científicos, com o erário público, fundamentais na explicação e arguição no caso dos fogos florestais, por exemplo. O que vimos a seguir - Pedrogão Grande e 2017 - foi o dramático incêndio do Estado Social em fiapos. A metáfora do burnout implica seres humanos numa zona limítrofe de nexo psicofísico. Isto é, “queimaram-se”. Contudo, estes seres humanos, exaustos, à rasca, são responsáveis por formar todos os demais. Qualquer governo minimamente identificado com questões públicas urgentes e problemas humanos persistentes, formado, aliás, por gente ligada à educação e às universidades, deveria demonstrar empenho em oferecer soluções dignas.
A população portuguesa precisa escolher se quer viver num país que salva bancos ou numa nação que desenvolve arte, ciência, cultura e trabalho criativo nas suas escolas. Não são os bancos que devem decidir orçamentos, currículos e planos das escolas.
E: Há saídas?
R: A saída positiva deve partir de uma luta em defesa da educação pública que, mais uma vez, coloque no centro a liberdade, a igualdade e a comunidade entre seres humanos. Esta luta passa por repensarmos a organização do trabalho nas escolas. Não pode ser uma luta estritamente economicista, ou politicista, mas em perspetiva de totalidade. Obviamente é preciso chatear muita gente grande: o FMI, a Zona do Euro, governos preocupados em salvar bancos e teóricos do mal dito “capital humano”.
De uma vez por todas, devemos devolver esta expressão à pré-história da humanidade e seu passado ultra-passado: se é humano não é capital e se é capital não pode ser humano. Não é muito difícil imaginar um futuro sem lucros recorde de bancos ou milionários que prosperam com capital financeiro às custas do bem-estar de milhões de pessoas. Mas alguém consegue imaginar um futuro decente em que as escolas não sejam sustentadas, professores reconhecidos e estudantes estimulados?
Já não podemos mais olhar para o lado. Nem é possível escolher não escolher. A luta pela Educação é universal, de todos. É urgente repensar um projeto de sociedade que inclua uma outra educação possível. Limitar uma mudança educacional radical às margens corretivas, sempre interesseiras do capital e sua ordem, significa abandonar de uma só vez - seja conscientemente ou não - o objetivo de uma transformação substancial, e não só formal, qualitativa: a alternativa. Como diz a canção: “muda, tudo muda”. Quem não transforma tudo não muda nada.
Para finalizar uma citação de Pierre Bourdieu: “A economia, de acordo com a definição dominante, leva em conta custos, lucros, balancetes, etc., mas apaga custos sociais e lucros sociais, tudo o que não é quantificável, tudo o que não é calculável, tudo o que pode não pode ser antecipado por computação, racionalização e números. Como resultado, subestimamos severamente o que são custos reais e superestimamos a relação custo-benefício, por exemplo, e se realmente levássemos em conta - isto é apenas um exemplo – o custo da violência urbana… Quando os governos europeus ou outros governos pedem aos sociólogos que estudem a violência nas escolas, nas periferias, há sempre dinheiro para isso.. O que eles querem? Receitas para fazer a violência desaparecer. Precisamos de mais polícias, mais assistentes sociais, mais professores? A escola desempenha um papel social na violência? Mas como protegemos as escolas? Essas são as questões sociais que são levantadas. De facto, eles excluem sistematicamente a questão de saber se as causas da violência não residem fora desse universo, em coisas que são totalmente óbvias, como a taxa de desemprego, insegurança no emprego, insegurança existencial sobre o destino, o facto de o porvir ser absolutamente incerto. A eliminação da violência na escola, o facto de algumas crianças, por causa de sua origem, tanto social quanto étnica, sendo que as duas estão frequentemente ligadas, estão fadadas a serem eliminadas pelo sistema escolar. As causas da violência residem em toda a estrutura social. O que não é percebido é que se realiza economia de um lado: como quando dizem ‘vamos cortar custos’, ‘vamos reduzir’, ‘vamos demitir duas mil pessoas para cortar custos de produção e sermos competitivos no mercado mundial’, as economias feitas de um lado são pagas no outro extremo. Dois mil desempregados, e muito especialmente se forem jovens, tomarão tranquilizantes, tornar-se-ão alcoólicos, usarão drogas, tornar-se-ão traficantes e depois, eventualmente, assassinos e manterão a polícia no trabalho duro. Se equilibrarmos os custos sociais induzidos por uma abordagem puramente econométrica à economia de custos, é fácil ver o que é uma economia ruim. Isso é tudo. O que temos é uma economia muito ruim, baseada na dissociação de económico e social. Mas o que é social é também económico. Não há nada fora da economia ampliada: tristeza, alegria, felicidade, prazer em viver, o andar pelas ruas sem ser atacado, a qualidade do ar que respiramos. Tudo”.
(Negrito nosso)