Paulo Guinote
Um “novo paradigma” não pode ser o mesmo de sempre em termos de procedimentos + computadores + sessões à distância em sincronia. Caso contrário é apenas o velho paradigma com roupagens novas.
O presente ano lectivo, bem ou mal vai terminar com este modelo que não se percebe muito bem ainda qual é, embora se apresente como um “novo paradigma” e o anúncio de um futuro diferente para a Educação. Confesso que já me apetece muito pouco regressar à discussão sobre as decisões tomadas, preferindo perceber se algo está a ser preparado para o próximo ano e se, mais do que cenários entusiasmados, algo está a ser aprendido com a presente emergência a caminho de calamidade, numa evolução semântica que me levanta dúvidas.
Por isso, e quanto ao próximo ano, gostaria de deixar aqui algumas ideias que estão muito longe de esgotar o tema e que, como é natural, resultam do que são as minhas prioridades, tendo em atenção as maiores preocupações que a situação das últimas semanas me levantaram.
Em primeiro lugar, é necessário abandonar o discurso do combate às desigualdades e a construção legislativa da igualdade e da “inclusão” para se passar a uma prática que as promova activamente, para além da entrega caridosa de mais este ou aquele equipamento informático. A velha história do peixe, da cana de pesca e da aprendizagem da pesca em si aplica-se aqui como uma luva, porque não foi com Magalhães que se eliminaram as barreiras à aprendizagem no 1.º ciclo e não será apenas com o acesso à banda larga que os problemas sociais e económicos de parte importante dos alunos e suas famílias se resolverão. A desigualdade (resultante de uma disparidade enorme de rendimentos e posição relativa no mercado de trabalho) só se combate com políticas que se desenvolvam antes de mais para além dos portões das escolas. O mesmo é válido para a tão proclamada “inclusão”. As medidas de promoção do sucesso escolar e de combate ao abandono são meros paliativos; são analgésicos para combater uma infecção antiga e persistente.
Em seguida, relativamente ao modelo de ensino ou ao que pomposamente alguns chamam um “novo paradigma da Educação” há que estabelecer se, caso a situação de ensino à distância se mantenha de forma mais alongada ou mesmo intermitente, a rede criada continuará a assentar nos equipamentos privados dos docentes. E não chegam parcerias para aquisições de novos equipamentos com uma percentagem variável de desconto que mantém uma enorme margem de lucro para as empresas que andam, por estes meses, a pressionar imenso para que a opção por um modelo assente em equipamentos informáticos se generalize, independentemente de qualquer pandemia.
Ainda quanto a esse eventual “novo modelo”, é muito importante que o suporte digital tenha alguma coerência a nível nacional, independentemente das autonomias locais, e que sirva para aligeirar a carga de procedimentos burocráticos que se abateu, em nova camada, sobre os docentes desde meados de Março. A multiplicação insana de novos mecanismos de controle do trabalho docente e de representação dos actos pedagógicos ganhou em algumas “unidades orgânicas” um nível inaudito de desvario. Ou as novas tecnologias servem a Educação e os seus agentes ou servem apenas para uma nova forma de servidão laboral, só que com o verniz da modernidade digital. O chavão, velho, da necessidade de renovar mentalidades é outro que se aplica a uma realidade em que velhas formas de pensar dificilmente mudam em novos contextos, mesmo nos que, à partida, deveriam ser favoráveis a uma mudança.
Entroncando com esta questão, mantém-se outra, que vem de há mais de uma década e que passa pela forma como o modelo de gestão escolar se foi cristalizando nos defeitos, sem ganhar quaisquer novas qualidades. Porque o modelo hierárquico de liderança, baseado na nomeação e fidelidade, aliado a esta forma de decidir tudo à distância, também acentuou o que de pior tinha a lógica neo-feudal de governação das escolas e agrupamentos. Também aqui a retórica das boas enunciações acerca do “trabalho colaborativo”, da “partilha dos materiais e métodos de trabalho”, da “cooperação” não tem qualquer correspondência na prática, porque o que tem acontecido é – com naturais, honrosas e admiráveis excepções – que grupos pequenos e cada vez mais estanques têm assumido o domínio total das decisões tomadas, raramente reagindo bem a críticas ou pedidos de “aclaramento” dos procedimentos. A “partilha” é em circuito fechado e a ideia de “colaboração” é no sentido descendente, com as bases a colaborarem de forma cordata na implementação do que foi decidido pelo topo da pirâmide. Sendo que este modelo a nível local replica o modelo nacional, com maior ou menor capacidade de sedução, maior ou menor tentação pela pura e simples imposição.
Um “novo paradigma” não pode ser o mesmo de sempre em termos de procedimentos + computadores + sessões à distância em sincronia. Caso contrário é apenas o velho paradigma com roupagens novas.