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sábado, 9 de maio de 2020

A relação com o sistema escolar em tempos de crise e de ensino à distância

Educação e crise: ensino ou distância?
Francisco Teixeira, Raquel Varela e Roberto della Santa

Os professores são essenciais ao atual estado de coisas, a escola é essencial à nossa vida democrática, mas não a podemos submergir em fetichismo e normativização digital e tecnológica que, mais do que libertar, nos aprisiona a todos.

Um dos imensos desafios criados pelo confinamento foi o da sua relação com o sistema escolar. A ideia de que se pode “dar aulas” à distância foi amplamente divulgada. O professor foi individualmente recrutado a ser ele uma escola inteira – quando a escola é por excelência um coletivo. Mesmo com os falhanços óbvios do sistema, a nível técnico, democrático, proteção de direitos e sofrimento psíquico de famílias, alunos e professores – “sofrimento psíquico” que levou, por exemplo, que alguns Estados norte-americanos tenham abandonado o “ensino à distância”. “Aulas” remotas, sobretudo com crianças e adolescentes, sincronizadas ou não, continuaram a ser apelidadas de “aulas à distância”, quando não constituem verdadeiro ensino e educação.

Num desafio, é tão importante conhecer a solução como o problema. Pensar que o problema estaria na falta de computadores é redutor e desconhece o que são hoje os problemas da educação. Incentivar os municípios a adquirir computadores ou iPads, canalizando para aí recursos (com tantos docentes mal pagos), desconhece que o problema fundamental do ensino, e que o tem levado a afastar-se cada vez mais dos seus sujeitos – professores e alunos –, é de outra natureza. Não faltam computadores a muitos, e mesmo assim o seu alheamento é evidente.

A educação escolar moderna é um processo de formação humana integral que se desenvolve de maneira complexa, politécnica e omnilateral, isto é, em todas as direções (de que é exemplo o homem vitruviano de Leonardo da Vinci, envolvendo o desenvolvimento humano em todas as direcções, todas as esferas da vida). Os processos de ensino e aprendizagem exigem, pela particularidade do acto de educar, a simultaneidade (e não a sincronidade). É preciso sentido e vontade conjugados, no tempo e no espaço, de forma coletiva – sem o que “o ensino” é um feitiço, um simulacro. E não empenhará nem alunos nem professores. Pelo contrário, levará a mais abandono, desmotivação de alunos, burnout de docentes (e mesmo de alunos). 

Mesmo com cada vez mais iPads, o acto de ensinar tem que saber criar paixões por conhecer, e não compulsões por repetir. São imensos os sinais e indicadores de que já antes da covid-19 essa paixão, essa vontade de ensinar e de saber, que nenhuma máquina substitui, se tem vindo a esbater em demasiadas escolas, com professores e alunos em crescentes más condições de trabalho, vida, programas de ensino, metas, avaliações e toda uma panóplia de “educação para o mercado” que nos deixou, ainda em tempos de “normalidade”, muito longe do sonho de Da Vinci. O “ensino à distância” vai ainda distanciar mais os sujeitos do seu sentido de trabalho, educação, ensino e estudo.

Sem relação presencial entre alunos e professores, estimulando o sentido crítico, debatendo e combatendo com conhecimento opções de contraditório, argumentando e contra-argumentando, estabelecendo relações críticas tensionais, não existe verdadeira educação livre. Não que o processo de educação-ensino-aprendizagem não possa e não deva incluir meios digitais, presenciais ou à distância, tecnologias de informação e comunicação de natureza não analógica. Mas esses meios são sempre subsidiários e secundários – suporte didáctico, e não modalidade de ensino – relativamente àquilo que é o essencial da relação pedagógica. 

Não é possível construir um espaço de aula exclusivamente através de meios digitais ou televisivos, embora estes possam e devam estar à disposição de professores e alunos. Não que esses espaços não possam ser utilizados, neste momento particular. Mas nunca, e esse é o perigo que hoje se vive em Portugal, através da veiculação da ideia anticientífica de que usar, em exclusivo e como forma substituta das aulas presenciais, uma plataforma digital ou um canal de televisão com conteúdos culturais é “dar” aulas ou um momento “mágico”. Não é. Bem pelo contrário. É um momento trágico.

Uma das principais, senão a principal, obrigação ética do professor (e, bem entendido, do sistema educativo no seu conjunto) para com os seus alunos, é a honestidade intelectual. Por isso é que é preciso deixar de insistir na ideia e semântica, e mais ainda na prática simulada, das “aulas à distância”, das “aulas digitais”, da “tele-escola”.
Do que se trata, neste momento, é da transformação da casa de muitos numa “unidade produtiva”, sem espaço para a vida privada, submetidos a uma lógica laboral permanente, totalitária, exceto quando não estão a dormir

Aliás, o que esta semântica, induzida sobretudo politicamente (mas não só) tem provocado (com inúmeros exemplos, de reportagens jornalísticas, testemunhos de professores, das suas organizações sindicais, dos diretores de agrupamentos, etc.) é uma relação altamente stressante e disfuncional entre muitas escolas, professores e alunos e suas famílias, por via de protocolos altamente perturbadores das dinâmicas familiares, da psicologia infantil e juvenil, bem assim como das relações sociais e das próprias condições de trabalho dos professores, subitamente esmagados por lógicas burocráticas e de controlo que impedem uma normal fruição e regulação da sua vida privada e familiar. Do que se trata, neste momento, é da transformação da casa de muitos numa “unidade produtiva”, sem espaço para a vida privada, submetidos a uma lógica laboral permanente, totalitária, exceto quando estão a dormir.

Muitas destas disfunções poder-se-iam justificar em nome do bem comum. Mas não é disso que se trata. Os alunos não estão a ser ensinados, as aulas não estão a ser “dadas” (mesmo aos que estão nas “aulas”, já que uma parte, em alguns casos 60%, nem lá vai, à “aula” virtual), as relações pedagógicas foram substituídas por protocolos digitais que simulam relações pedagógicas, usadas por muitos como mecanismo de legitimação de uma normalidade impossível, porque estes não são tempos normais.

Bem entendido, os professores e a Escola não podem abandonar os seus alunos e as suas famílias, como não o têm feito (com um ora heroico, ora voluntarista menosprezo pela sua própria vida pessoal e familiar). Pelo contrário. A sua presença, ainda que digital, é de fundamental importância para a sua conexão à cultura, ao conhecimento, à sociedade e a um tipo de aprendizagem informal, mas que não pode deixar de ser senão modulação cultural e cívica, ao invés de pseudoaulas, de novos conteúdos, de conferências televisionadas ou de monólogos digitais, que uns apresentam e os outros fazem de conta que ouvem e aprendem. Pelo contrário, a estratégia só pode ser a de uma relação cultural ampla, crítica e não instrumental, evitando a ideia e o objetivo curricularista estrito.

Para além disso, e muito em particular, é especialmente preocupante que o atual modelo de pseudoensino à distância esteja a normalizar uma relação acrítica, dos alunos, dos professores e da sociedade, com os meios de comunicação digitais e televisivos (e com a política), uma relação passiva, com os seus mecanismos conetivos, “saltitantes” e superficializadores, menosprezando a atenção, a concentração, a imaginação, o pensamento abstrato, fundamento da ciência fundamental, e a interioridade experiencial, típica da leitura em papel, própria dos livros analógicos, e que constituem a raiz da cultura de resistência e autoconstrução pessoais e coletivas, contra a alineação produtivista dos meios rápidos e de pura exterioridade existencial.

Os professores são essenciais ao atual estado de coisas, a escola é essencial à nossa vida democrática, mas não a podemos submergir em fetichismo e normativização digital e tecnológica que, mais que libertar, nos aprisiona a todos. A verdadeira educação democrática e republicana distancia-se dos privilégios da corte e do clero e aproxima-nos das ideias de liberdade humana, igualdade social e audácia no saber e na crítica.

domingo, 3 de maio de 2020

Os professores têm feito um excelente trabalho. Só espero que possam ser tratados com respeito e carinho, por parte dos pais e alunos

O último grande desafio dos professores
Filipa Chasqueira

Enquanto me vejo grega para ajudar os meus filhos a responderem às várias solicitações das escolas, só me lembro dos professores, que foram apanhados de surpresa nesta mudança repentina e tiveram de responder com celeridade ao que lhes tem sido exigido.

Diria que a grande maioria não tinha sequer a experiência necessária para trabalhar com as novas tecnologias da forma que se tem imposto. Tem sido uma aprendizagem para todos - professores, pais e alunos – feita, muitas vezes, à custa de bastante sacrifício.

Os professores têm dado o litro e conseguido responder de uma forma fantástica ao desafio. Planeiam as aulas meticulosamente durante o fim de semana ou ao final do dia para que no início de cada semana já esteja tudo pronto, de forma sucinta e clara. E durante o dia vão se debatendo com uma série de desafios: as aulas síncronas são muitas vezes uma dor de cabeça, seja porque os programas não funcionam corretamente, porque alguns alunos estão pouco interessados, – muitos não têm maturidade suficiente para acompanhar uma aula daquele género – porque há pais que interferem, alunos que são mal educados ou as boicotam. (Infelizmente também tem havido relatos de comentários menos simpáticos por parte dos professores dirigidos a pais e alunos.) A qualquer hora do dia ou da noite os seus e-mails são inundados sobretudo de dúvidas e de mensagens mais ou menos simpáticas. Ao mesmo tempo os trabalhos vão chegando e têm de ser corrigidos com alguma ligeireza. E se fosse só a correção… mas tudo o que é feito, seja a correção, os planos ou a programação das aulas, tem de ser depois inserido no computador. Penso naqueles professores mais velhos, alguns deles com um contacto muito esporádico com estas modernices, que neste momento têm de fazer um esforço enorme para realizar todo o processo.

Além de tudo isto, não nos podemos esquecer que muitos professores não têm só uma turma, podem ter três, quatro, oito…. E dar resposta a todas elas. Muitos ocupam ainda funções de direção de turma, da escola ou do agrupamento. E para além disto tudo podem ter filhos a quem têm de dar atenção, cuidados e apoio no estudo, já para não falar nas refeições e tarefas da casa. Como conciliar tudo? Não sei. Nem eles às vezes devem saber como é possível.

Imagino os diretores de turma a serem assaltados com emails de mães aflitas porque os filhos não conseguem entrar nas aulas síncronas, a terem de falar com os colegas para darem respostas imediatas, enquanto os dispositivos não respondem corretamente e têm as suas próprias aulas para dar e preparar, mais os filhos em casa que por sua vez também não conseguem entrar nas aulas deles ou que têm dúvidas no estudo.

Esta quarentena tem sido muito exigente para todos os que, em casa ou fora dela, trabalham contra o tempo e acumulam várias funções. Os professores estarão no topo da lista e ninguém lhes perguntou se queriam participar no desafio. Só nos resta agradecer o esforço e dedicação de todos, sem julgar ou pressionar. Têm feito um excelente trabalho, que não sei sequer se seria justo lhes ter sido pedido. Só espero que possam ser tratados com respeito e carinho, por parte dos pais e alunos e que no final da telescola possam gozar umas belas e merecidas férias, de preferência, bem longe dos computadores.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

A situação é excepcional, mas há limites!

O outro lado do ensino à distância

Sim, a situação é excepcional, mas há limites. Os professores estão a correr sérios riscos, o risco de que as excepções se tornem rotina, o risco que representa o acatamento cego de ordens... 

Costuma dizer-se que as crises desvendam o que de pior e melhor existe em cada pessoa com as dinâmicas de grupo que esse desabrochar possa causar. O turbilhão que se foi instalando em Portugal à medida do crescimento da pandemia, tem funcionado como uma onda sísmica que tem atacado vários setores da sociedade, embora nem todos com a mesma brutalidade, e evidenciado o perfil dos seus protagonistas. Uma das áreas mais fustigada é a da Educação. E ao longo destas semanas que já parecem anos, vários actores da grande narrativa educativa têm mostrado o que de pior e melhor conseguem fazer e ser.

Comecemos pelo pior: o Ministério da Educação tem salientado o seu habitual desnorte, próprio de quem não sabe muito bem como funciona o ensino em Portugal, os recursos das escolas, dos alunos, dos professores (bom, desses nem importa falar), como é o perfil comportamental de muitos (demasiados) alunos, quer do básico quer do secundário contraindicado a aulas no formato videoconferência. O Ministério da Educação não sabe, ou finge não saber, que as múltiplas faces da antipatia visceral que muitos encarregados de educação dedicam aos professores (e que o ME tem alimentado) passaram a ter, com as aulas síncronas através das plataformas digitais, um salvo conduto há muito desejado para invadir a sala de aula exercendo um papel de capatazes de vernáculo pouco recomendável. O Ministério da Educação não sabe nem quer saber, mas finge que sabe atirando com umas frases, uns lugares comuns, um repertório de “faz de conta”, o que é a Escola em Portugal.

A ausência de um Projecto Educativo que vise de facto competências holísticas e a construção de seres éticos e comprometidos com o mundo, tem vindo a evidenciar-se com este acesso de crise psicótica que tem elevado o mundo kafkiano em que as escolas vivem a um patamar e dimensão inimaginável.

Mas o Ministério da Educação tem contado com a ajuda preciosa de um outro espectro de actores medíocres. Muitos directores de agrupamentos (não todos felizmente) (...) mandam os que consideram como seus subordinados multiplicar procedimentos e recursos digitais, tabelas de controlo e tarefas aos alunos, contactos permanentes com os diretores de turma, com os encarregados de educação, com os alunos. Aos professores, que raramente consideram como colegas, exigem total disponibilidade para se colarem ao Zoom (campo ideal para se evidenciarem os comportamentos bizarros), manterem atenção a todos os canais comunicantes (só faltam os sinais de fumo), marcarem presença nas reuniões (muitas, claro) e responderem a todas as solicitações, surjam elas quando surgirem.

Quanto aos alunos, uns desesperam por não conseguirem dar conta de tanta plataforma e tanta tarefa, ao mesmo tempo que os pais roem o sabugo dos dedos no desespero de quem precisa de trabalhar no único computador da casa. Outros, entretêm-se como é seu hábito nas salas de aula, mas nunca se tornou público como agora, boicotando o trabalho, desrespeitando professores e colegas, provocando, humilhando.

E temos ainda os tais pais que desenvolveram asco à escola e que veem no professor o alvo ideal para descarregarem tudo o que gostariam de fazer no chefe que os humilha, ou nos filhos que os ofendem. (…)

Enfim, no meio deste universo demencial, o lado melhor da crise surgem a par de muitos estudantes empenhados e pais comprometidos com as suas responsabilidades, os professores a confirmarem a sua faceta altruísta colocando, uma vez mais, a missão docente como prioridade. Mas, será que o devem fazer a qualquer custo?

Qual deverá ser o papel dos professores neste contexto? Ceder a tudo? Trabalhar 70 horas por semana? Colocar o seu computador pessoal e a net que pagam ao serviço de um chorrilho de disparates? Devem esquecer políticas de privacidade, salvaguarda de imagem e de segurança digital? Devem esquecer que a semana de trabalho acaba à sexta-feira? Devem ser eles a suspender o que o Estatuto da Carreira Docente consagra e que tanta luta tem representado para não ser mais desvirtuado?

Sim, a situação é excepcional, mas há limites. Os professores estão a correr sérios riscos, o risco de que as excepções têm se tornem rotina, o risco que representa o acatamento cego de ordens emanadas das direcções dos agrupamentos que excedem, antecipam e interpretam mal o que já de muito errado é disparado do Ministério da Educação.

Este deve ser um tempo especial não apenas pela obrigatoriedade de quarentena, mas porque esta oferece uma possibilidade ampla de experiências que de outra forma não teríamos. Sejamos claros: a casa não é nem deve ser prioritariamente um espaço escolar, mas sim um espaço com rotinas inerentes às dinâmicas familiares e onde haja lugar à multiplicidade de aprendizagens e mecanismos de desenvolvimento de competências que não passam pela resolução de fichas. A destreza mental, habilidade motora, criatividade, autonomia, responsabilidade são em grande parte adquiridas e otimizadas num contexto educativo primário, ou seja, dentro da família. Ler, ver bons filmes e falar-se sobre eles, escrever, pintar, desenhar, criar debates, construir um jornal de família, cozinhar, inventar… tanta coisa a fazer. Fichas e aulas? Com sensatez e havendo possibilidade para tal. Caso contrário, ninguém morre por não as realizar e podemos até ganhar muito mais se soubermos aproveitar o tempo. Alguns pais precisam de descobrir os filhos que têm. Façam-no agora.

E descobrir o tempo e o lento pulsar da vida, falar uns com os outros e reaprender a respirar é bem mais importante, num contexto familiar, que qualquer ficha que se possa fazer.

São os professores que devem demonstrar claramente isto dizendo: Não! Basta! Principalmente quando o que lhes é exigido toca as raias da insensatez e do pesadelo. Porque dizer Não é, muitas vezes, um acto de coragem, um contributo educativo e a garantia de que não se está a comprometer o futuro.

terça-feira, 7 de abril de 2020

A realidade acaba por se sobrepor mesmo aos mais habilidosos

COVID-19 | Dia 20 – Três certezas para o 3.º período

Paulo Guinote

No meio de tantas dúvidas que permanecem e, quase aposto, não serão todas resolvidas a 9 de Abril, há certezas que já se formaram acerca do 3.º período que se aproxima no calendário oficial.

A primeira dessas certezas é que já foi tomada a decisão política de transmitir para a opinião pública a ideia de que tudo vai decorrer o mais “normalmente” possível, com “novas aprendizagens” a ser feitas e uma avaliação a ser feita no final do 3.º período que não corresponde à que foi feita no 2.º. Dessa estratégia faz parte o adiamento, até aos limites do possível (ao contrário do que foi feito já em Espanha, França, Inglaterra ou Itália), de uma qualquer eliminação das provas de aferição e de suspensão e/ou recalendarização das provas finais do Básico e dos exames nacionais do Secundário.

A segunda certeza é a de que nada disto será vagamente “normal”, mesmo que seja possível forçar um regresso às aulas presenciais no início de Maio. Muito menos que essa “normalidade” tenha condições para um processo de ensino/aprendizagem que dê garantias de universalidade e equidade, mesmo que o meio a usar para as “aulas não presenciais” seja a TDT, complementada com outros meios para contactar os alunos, transmitir tarefas e recolher as “evidências”. Muito menos que há condições para uma “avaliação” dos alunos que seja muito diversa da já feita, mesmo que se lancem classificações e se produzam novas pautas (virtuais). Quem já antes não cumpria, praticamente desapareceu do radar e quem antes não ia às aulas, agora muito menos dá sinal de vida. Irão cumprir, os que já antes cumpriam, com maior ou menor esforço.

A terceira certeza é que, em regra, a realidade acaba por se sobrepor mesmo aos mais habilidosos sofistas ou aspirantes a Zenão. Mais tarde ou mais cedo, choca-se mesmo com o muro se não existir o cuidado de o evitar. E é sempre melhor preparar o salto a tempo.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

O ensino/aprendizagem à distância e o teletrabalho docente não pode basear-se em fórmulas fechadas e rígidas


Paulo Guinote

Uma das vantagens do modelo de ensino à distância e talvez a única que permite alguma aplicação dos princípios da diferenciação pedagógica é a de permitir aos alunos irem avançando nas tarefas e aprendizagens no seu ritmo, adequando os materiais que lhe são facultados às suas capacidades.

Podemos retirar o “presencial” das actividades letivas” ou das “reuniões”, mas é muito complicado retirá-lo da mentalidade de algumas pessoas. E o que é paradoxal é que em certos casos isso acontece com quem apresenta maior entusiasmo pela opção por plataformas e métodos “inovadores” de ensino à distância e que aderem de forma entusiasmada ao discurso da “oportunidade” que tudo isto representa para “dar um salto para a Educação do século XX”. Até chegam a falar, nem seria de esperar algo diverso em quem ecoa a retórica oficial, em “novo paradigma”.

É impossível dar qualquer salto quando não se compreende que as ferramentas digitais e o ensino à distância não representa qualquer avanço em termos metodológicos se o que se pretende é replicar o mais fielmente possível o que se passava em modo de proximidade, perdendo o aspecto fulcral desta, que é o contacto humano e a dimensão empática da relação pedagógica com os alunos ou de trabalho com os colegas.

O ensino/aprendizagem à distância e o teletrabalho docente não pode basear-se em fórmulas fechadas e rígidas, como aquelas que pretendem que tudo seja realizado do mesmo modo e de forma síncrona. Uma das vantagens do modelo de ensino à distância e talvez a única que permite alguma aplicação dos princípios da diferenciação pedagógica é a de permitir aos alunos irem avançando nas tarefas e aprendizagens no seu ritmo, adequando os materiais que lhe são facultados às suas capacidades. Os learnner-centered mooc são isso mesmo: cursos centrados nos alunos e na auto-regulação das aprendizagens. Sim, é um modelo com o seu quê de utópico, mas reconheço-lhe essa dimensão positiva.

Mas aquilo a que assistimos nas últimas semanas do 2.º período nem sempre teve isso em atenção, nem sequer algumas das propostas que foram surgindo, insistindo muito nos momentos síncronos, com a sugestão de horários estabelecidos de forma algo rígida. E o mesmo se passou com as reuniões de avaliação, tendo-me chegado relatos que me deixaram entre o riso e o pasmo, com pessoas a exibir pautas para as webcams e a “cantar as notas” e a coloquiarem como se estivessem na sala X da escola Y e tudo fosse como dantes. Perdendo todas as vantagens do modelo à distância e, ao mesmo tempo, da dimensão presencial. Se é para continuar assim, estamos tramados, a começar pelos alunos.

O ensino à distância para centenas de milhares de alunos não faz sentido

Francisco Teixeira

Vivemos uma interrupção. Adaptemo-nos a isso sem transformar o anormal em novo normal, sem fetichismos que separem o nosso desejo da coisa verdadeiramente desejada: um país e um sistema de educação justos e decentes, intelectualmente honestos, que não transige da ideia de igualdade e que não deixa ninguém para trás.

O ensino à distância existe, de há muito, para adultos ou jovens adultos e para pequenos grupos de crianças ou jovens em condições específicas. Acontece que é tudo menos consensual até que ponto os seus resultados são justos e democráticos. De qualquer modo (e destrunfando esse debate), a ideia que se pode desenvolver ensino à distância, simultaneamente, para centenas de milhares de alunos, particularmente hoje, em Portugal (mas podia ser em geral), não faz sentido pelas razões que passo a apresentar. 

A primeira razão é que uma parte substancial dos alunos portugueses não tem condições materiais e tecnológicas para ter ensino à distância. Simplesmente não têm ligação à internet. Há quem diga que são 5%. Mas muitos mais têm ligações tão fracas, do ponto de vista tecnológico, que é como se não tivessem. Ou, em imensos casos, não têm webcams, impressoras, colunas de som. Ou têm pacotes de dados limitados.

A segunda razão é que muitos professores também não têm ligações à internet em condições mínimas de qualidade, de modo semelhante aos alunos.

A terceira razão é que mesmo muitos dos alunos e professores que têm boas ou razoáveis ligações à internet só têm um computador e vivem em famílias com vários outros elementos que também precisam, na atual situação (ou noutra de uma suposta generalização do ensino à distância), de estar ligados à internet, e não é possível compatibilizar os interesses e necessidades de todos.

A quarta razão é que não é possível, a cada professor, ensinar à distância os seus cerca de 100/150 alunos (nalguns casos 250 alunos), mesmo equipados com ligações tipo NSA, já que a relação ensino-aprendizagem tem uma dimensão pessoal/analógica, e prática (de organização social de grupo), que não é compatível com a velocidade das relações vídeo, áudio, de e-mail ou baseada em plataformas online, a não ser que os alunos e professores se esmagassem em corridas insanas de plataforma para plataforma, de e-mail para e-mail, aos milhares por semana.

A quinta razão tem a ver com a própria natureza do ensino/aprendizagem, de algum modo apontada no parágrafo anterior. A gestão das relações ou emoções é essencial, no sentido mais estrito da palavra, à prática do ensino de crianças e jovens. Ensinar quer dizer dispor (gerir) as emoções dos alunos e do professor de modo a que os alunos possam aprender. Ora, isso exige um tipo de relação analógico/presencial que o digital não permite. Bem entendido, o digital pode, e deve ser, um dos instrumentos da relação ensino/aprendizagem. Mas dizer que pode ser o único instrumento, e substitutiva da relação presencial docente, vai contra todo o conhecimento adquirido. Isso não quer dizer que os alunos não aprendessem coisas, numa espécie de distopia digital, sem professores humanos à mistura. Certamente que aprenderiam. Viver é aprender e enquanto não estivessem mortos estariam vivos (como certos filósofos bem sabem). Mas aprenderiam coisas complemente diferentes das que aprendem hoje. Uns aprenderiam umas coisas, outros aprenderiam outras e a desigualdade instalar-se-ia de um modo definitivo e crescente, com um alto clero erudito e hípereficaz para um lado e um lumpemproletariado digital para o outro, dependendo das aplicações ou da mélange (leia-se o Dune, de Frank Herbert) a que tivessem acesso (ver o Parasitas, de Bong Joon-ho, por estes dias, também dá muito jeito, apenas como indicação). 

Uma sexta razão tem a ver com a avaliação dos alunos. Sendo tão discrepantes as condições dos alunos num ensino à distância generalizado, a ideia de uma avaliação sumativa é simplesmente absurda e mesmo a avaliação puramente qualitativa não poderia ser realizada a não ser de modo… altamente imaginativo. 

A sétima razão tem a ver com a privacidade dos dados dos alunos e dos professores. Acontece que nada na internet o garante, e isso não é, de todo, coisa de somenos. O treino de ser vigiado e o híperpanoptismo em que vivemos dispensa bem que sejam os Estados, os pais e os professores a treinar os seus filhos e alunos a ser vigiados sem limite, dispondo da sua vida não se sabe para quem.

Muitas outras razões se poderiam somar às anteriores, contra a hybris dos tele-ducadores e do mercandejar de serviço, à disposição, rapidamente e em força, da insegurança e medo das famílias. Fiquemos por aqui.

Esta crise é uma interrupção. Certamente gerará efeitos não esperados e outros mais ou menos à vista (como os de uma depressão económica e social, cruel, a aproximar-se, contra a qual e na qual teremos que lutar. Talvez seja de começar a preparar as crianças e os jovens para isso mesmo). Mas não gerará uma Revolução nem sequer uma revolução (por exemplo, a revolução do federalismo europeu, pelo qual valia a pena verter um pouco de sangue e lágrimas). Se assim é, a crise tem que ser tratada como uma interrupção, como um mal biológico e social que vem e que há de ir, até ao próximo, para o qual, espera-se, estaremos melhor preparados (em favor de uma catastrofologia, espero bem que fiquemos simplesmente à espera da próxima).

O que fazer, então, com as escolas, os professores e os alunos, durante o terceiro período?

A famosa função social da escola não é a de guardar as crianças e os jovens. Mas não há como, neste momento particular, não pedir à escola que mantenha os seus alunos ligados, quanto possível, à ideia e prática do estudo, da leitura, da exploração intelectual, da solidariedade e da justiça. Ora, no tempo que falta para o fim do ano letivo, isso não se faz com o débito dos conteúdos em falta, com estratégias manhosas de avaliação, com lógicas de rédea curta digital que não podem senão decair em falsificação generalizada, com ou sem Excel. A minha opção é de que a escola deve manter com os alunos uma relação cultural e social de largo espetro. Como os antibióticos.

Cada turma deve ter, por semana, uma ou duas relações privilegiadas com um ou dois professores, com orientações, conversas, sugestões, debates. Onde e como seja possível. Sem currículo estrito ou avaliações sumativas. As escolas devem organizar-se para tal. E podem fazê-lo. Entretanto, o Governo deve dar um computador (um computador a sério e não o ferro velho que prolifera pelas escolas) e uma ligação de boa qualidade à internet a cada aluno português que os não tenha. Pode pedir-se, ou impor-se, às operadoras de telecomunicações, que paguem essas novas ligações à internet, pelo menos até ao fim deste ano civil.

Entretanto, declare-se o fim das aulas (que não, necessariamente, o fim do ano letivo), das provas de aferição, dos exames, crie-se um mecanismo de exceção para o acesso ao ensino superior ou adiem-se os exames do 12.º para outubro, permitindo que o ano letivo comece em setembro somente com alunos do 12.º ano, dando-se-lhes um tempo suplementar de preparação para os exames e permitindo aos professores preparar-se, em conjunto e analogicamente, para um ano letivo completo a começar só em novembro. E que as aulas do ensino superior comecem só em dezembro ou janeiro, até agosto.

Vivemos uma interrupção. Adaptemo-nos a isso sem transformar o anormal em novo normal, sem fetichismos que separem o nosso desejo da coisa verdadeiramente desejada: um país e um sistema de educação justos e decentes, intelectualmente honestos, que não transige da ideia de igualdade e que não deixa ninguém para trás.

Saia do marasmo senhor ministro!

Tocata para um ministro à distância

Santana Castilho

Saia do marasmo, ministro Tiago, e faça, pelo menos, isto. Se precisar de ajuda, diga. Vou trabalhar consigo, pro bono.

Vêm aí longas semanas de ensino a distância. Importa pois analisar a que distância está o Ministério da Educação (ME) da realidade.

Incapaz de produzir orientação séria, o ministro começou por proclamar que “os professores não estão de férias”. A maioria das escolas e demasiados professores, apostados em mostrar que não estavam de férias, tomaram iniciativas cujo volume, diversidade e fragmentação conferiram ao sistema a incoerência característica do “salve-se quem puder”. Em vez de desenhar um quadro de intervenção pedagógica e definir os recursos digitais para o executar, o ME arrebanhou tudo o que mexia na internet e despejou sobre as escolas, para ajudar à balbúrdia. Quando surgiram os primeiros reparos para a falta de computadores e de banda larga ao alcance de muitos alunos, o ministro Tiago chamou carteiros, escuteiros e professores reformados. Receei que se seguisse a requisição civil dos pombos-correios. Mas seguiu-se um roteiro, ora banal, ora prolixo, que transfere para as escolas e para os professores as responsabilidades centrais.

Agora, é preciso aproveitar estas estranhas férias da Páscoa para pensar com serenidade. O sistema não tem recursos para o funcionamento do ensino a distância na escala que é requerida. O ME não pode contar com os seus equipamentos obsoletos, sem capacidade de memória, nem com a sua internet, que ora é lenta, ora sucumbe, ora não existe. Só o salvam os equipamentos dos pais e dos professores, que pagarão as contas de energia e de internet. Os problemas logísticos que o ensino a distância coloca vão aprofundar as desigualdades sociais entre os alunos. Muitos (50 mil só no ensino básico) não dispõem de um computador nem de internet em casa. Muitos encarregados de educação não têm as condições e formação necessária para acompanhar os filhos nas tarefas escolares.

Saia do marasmo, ministro Tiago, e faça, pelo menos, isto:

– Defina já como se processa e como se avalia o trabalho do 3.º período, oficializando o que todos sabem oficiosamente.

Desista do ensino online para crianças do 1.º e 2.º ciclos, que não têm preparação para tal. Para estas e para todas as que não têm computador nem internet, recorra à televisão. Siga o exemplo da sua colega de Espanha, que reuniu recursos de 14 editoras e nove portais educativos e partiu para emissões de cinco horas diárias de TV educativa. Reserve o online para o 3.º ciclo e secundário, com identificação das plataformas digitais mais eficazes e a sua disponibilização gratuita.

Fixe horários nacionais para o ensino a distância. Este tempo de crise tem sido invasivo da privacidade dos alunos, das famílias e dos professores, com um enorme excesso de solicitações e exigências. Se há paradigma já evidente é o da servidão digital. Sem horário de actividades, tanta diligência e desrespeito pela privacidade alheia transformarão pais, professores e alunos em simples plataformas humanas à deriva, no meio das plataformas digitais.

Anule imediatamente as provas de aferição, marcadas para Maio, e os exames finais do 9.º ano. As primeiras porque, de duvidoso sentido desde o início, são agora redobradamente inúteis. Os segundos porque, sendo praticamente irrelevantes para a progressão dos alunos, ocupariam recursos e tempo necessários para iniciativas prioritárias, em tempo de crise.

Mande redefinir os conteúdos programáticos dos exames nacionais do ensino secundário (as provas devem ser limitadas ao que foi leccionado presencialmente) e mande reformular, em conformidade, os respectivos enunciados. Claro que isto o obriga a adiar o calendário dos exames e a coordenar com o seu colega do superior a acomodação destas mudanças no processo de acesso ao ensino superior.

– Incumba um pequeno grupo de pessoas sensatas (tem de procurar fora do seu circulo) de desenhar, desde já, um plano de regresso à actividade presencial, que preveja cuidados de vigilância e resguardo para uma eventual segunda onda da covid-19 (reduzir o número de alunos por turma, para aumentar o seu distanciamento em sala; redefinir normas de utilização de espaços comuns, designadamente recreios, e generalizar artefactos de higienização das pessoas e dos objectos). Aquando da reentrada, devem estar previstos apoios pedagógicos suplementares para quem deles necessite.

Se precisar de ajuda, diga. Vou trabalhar consigo, pro bono.
(Negrito nosso)

terça-feira, 31 de março de 2020

A opinião de João Ruivo - Em tempos conturbados, velhos contextos

Em tempos conturbados, velhos contextos

João Ruivo

Na ida década de 90 do século passado foram divulgadas duas obras que se constituíram referências obrigatórias na história da educação: referimo-nos à edição, em 1995, do "Livro Branco sobre Educação e Formação: Ensinar e Aprender para a Sociedade do Conhecimento"; e à publicação, em 1997, do "Livro Verde para a Sociedade da Informação".

A partir de então, a designação de sociedade do conhecimento ganhou foro de cidadania. E em que consiste esta sociedade do conhecimento? Genericamente refere-se à sociedade pós-industrial, à sociedade da informação, ou à sociedade da aprendizagem permanente. É a sociedade em que termos como "aprendizagem permanente", "informação" e "conhecimento" ganham notoriedade. É a sociedade em que a escola continua a ter um papel decisivo na formação inicial do indivíduo, no quadro de uma escola informada, mas em que a formação ao longo da vida exige que a escola não seja a única responsável pela formação do indivíduo já adulto e ou profissional.

É a sociedade em que as TIC na escola deveriam ajudar a "aprender a aprender", em vez de serem utilizadas para reforçarem a sistemática e mecânica transmissão de conhecimentos. Em que as TIC deveriam tornar os nossos alunos mais reflexivos e críticos, desenvolvendo as suas capacidades de metacognição.

Em que as TIC, em contextos problemáticos como o que vivemos, com as escolas fechadas, sejam o suporte de continuidade do trabalho dos professores e dos estudantes.

Todavia, passadas mais de duas décadas sobre a publicação daquelas obras, vejamos que evolução ocorreu na escola portuguesa para que os cidadãos alcancem a sociedade do conhecimento. Ou seja, em que condições se reflecte hoje sobre os contextos de aprendizagem nas escolas portuguesas.

Conviria sublinhar que estes novos contextos dinâmicos de aprendizagem só se podem gerar e alcançar em escolas que promovam uma forte liderança; uma grande estabilidade do corpo docente; uma profunda coesão entre todos os professores, os alunos o pessoal não docente e os pais; uma definição de claros (e alcançáveis) objectivos estratégicos; e, finalmente, um envolvimento profissional dos docentes na vida da escola que ultrapasse a mediania do estatuto da função pública.

Que contextos deveriam procurara os docentes, no seu dia a dia e em condições de "normalidade", para propiciarem aos seus alunos aprendizagens significativas e gratificantes, designadamente com o recurso às TIC?

A receita é sobejamente conhecida. Permitam-me, mesmo assim, que nesta era de voragem tecnológica, a relembre recuperando para estas páginas 36 indicadores perdidos entre práticas e memórias. Práticas e memórias que nos voltam a reenviar para um certo paradigma de escola.

Uma escola que desperta a curiosidade; o interesse pela pesquisa; o desejo de saber mais; a vontade de aprender sempre. Uma escola que ensina, porque aprende; que forma, porque informa; que inova, porque permuta; que utiliza a diferença como alavanca de desenvolvimento. Uma escola que forma alunos visionários, porque sabem criar cenários futuros; empreendedores, porque são pró-activos; criativos, porque assumem o risco da mudança; responsáveis, porque respondem às adversidades com carácter e sentido de valores. Uma escola que se baseia no respeito e na tolerância; na cooperação; na equidade; na solidariedade. Uma escola que promove a autonomia; a interacção; a compreensão intercultural; a diferenciação positiva; a acção orientada por um projecto. Uma escola com futuro, porque avança a diferentes velocidades; porque prossegue sem provocar rupturas; porque caminha com sentido e direcção; porque avança, mesmo quando não a deixam avançar. Uma escola que se alicerça na credibilidade; na independência institucional; na abertura à participação externa; na integração de novas abordagens; na acção coerente com os objectivos do sistema educativo. Uma escola que sabe aprender porque valoriza os seus líderes; optimiza a sua cultura organizacional; sedimenta nos docentes o sentido de pertença a um grupo profissional socialmente relevante; estimula o respeito pela diversidade; exclui a exclusão; inclui a inclusão.

Esta é a escola que desejaríamos, mesmo neste tempo conturbado e de contenção global, mas que dificilmente conseguiremos alcançar se não soubermos pôr de lado alguns facilitismos. Se não percebermos que a criação destes contextos de aprendizagem requerem muito suor e, por vezes, até abundantes lágrimas. Acreditando que o futuro voltará ser risonho para todos nós.

sábado, 28 de março de 2020

Paulo Guinote alerta para a proteção da privacidade e para o potencial de algo correr mal

Covid-19 | Dia 10 – A privacidade pelos ecrãs fora

Paulo Guinote

Um assunto que surgiu em conversa com colegas nos últimos dias, quando começámos a discutir o modo como se fariam as reuniões de avaliação, foi a da localização dos computadores e respectivas câmaras quando nos encontrássemos virtualmente. Muitos de nós, para além colegas, somos amigos e longa data, já nos visitámos, conhecemos os domicílios do convívio social que agora se desaconselha, somos todos adultos e a coisa não nos incomoda muito. Ou, pelo menos, não incomodará a maioria mais do que pensar que a opção, em Conselhos de Turma com uma dezena ou mais de elementos, é pouca prática, propicia alguma cacofonia e, no meu arcaico entendimento, é uma opção que só se justifica em casos excepcionais e não como regra.

Porque, se o terceiro período vai mesmo existir como nos garantem, agora bastará lançarmos as classificações com tempo, resolver esta ou aquela situação mais complexa e não há necessidade de estarmos ali com cara de quem acordou a meio de um sono de vampiro que é como quase toda a gente fica nestes casos.

Mas, a reboque de uma conversa em forma de brincadeira veio a questão mais delicada da privacidade na perspectiva dos alunos, em regra menores, caso a tutela insista na ideia peregrina das aulas síncronas, ao vivo. Para além de isso ser uma impossibilidade prática com muitas turmas, pois os meios disponíveis inexistem e inexistirão ainda mais com muitos encarregados de educação em teletrabalho (nas situações mais favoráveis) ou em situação precária ou de desemprego por causa da travagem económica (nas mais delicadas), temos o problema da invasão da privacidade de todos os envolvidos. Porque estaremos a entrar em casa dos alunos e, ao mesmo tempo, a expor-nos de modo muito pouco prudente, pois dificilmente saberemos se do outro lado está apenas o aluno e algum familiar a ajudá-lo em algumas tarefas.

Parece coisa menor? Nem por isso, sendo todo o ímpeto por sessões síncronas com os alunos de uma imprudência extrema, pois estamos perante um universo acima de um milhão de alunos menores, em suas casas, juntamente com dezenas de milhar de professores a “dar aulas” a partir do seu domicílio. O potencial para algo correr mal merece que se pense neste tipo de solução, antes de se tomar uma amostra pouco significativa por Juno.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Onde estão os arautos da “inclusão” quando precisamos deles?

Covid-19 | Dia 8 – O verdadeiro exame à inclusão

Paulo Guinote

As escolas receberam no início da semana uma indicação dos serviços do Ministério da Educação para fazerem o levantamento da situação dos alunos em relação aos meios disponíveis para acompanharem o ensino à distância, quer em equipamentos físicos (computadores, smartphones), quer em acesso à banda larga. A indicação foi passada, na generalidade dos casos, aos directores de turma que, em seguida, pediram aos encarregados de educação essas informações para as compilarem até final da semana.

Este tipo de “inventário digital” é muito importante e só é de estranhar que seja algo que está por fazer, atendendo a tanta informação que o ministério recolhe em tanta plataforma, ou não ter sido a primeira ou segunda medida tomada na situação actual, antes do avanço voluntarioso para o anúncio da passagem para o “ensino à distância” em formato digital. A busca do efeito político rápido sobrepôs-se à avaliação das condições materiais para desenvolver a medida. E agora, depois de se ter decidido o bolo a ser feito é que se está a tentar perceber se existem os ingredientes indispensáveis.

De acordo com números públicos, há cerca de 20-25% de agregados familiares sem condições mínimas para desenvolver o ensino à distância, sendo que esse valor tem forte assimetrias no país, mas de igual modo ao nível local, mesmo de turma para turma. Os entusiastas das vídeo-conferências e das aulas síncronas poderão ter turmas com esse tipo de dispositivos à disposição e sem necessidade de os partilhar com outras pessoas em casa, mas essa não é a realidade geral. E é aqui que as questões da “inclusão” se colocam porque não é novidade que o digital gap ou digital divide é um factor que potencia as desigualdades entre os alunos. Porque a exclusão digital em meio familiar é muito superior à que existe em contexto escolar.

Este tipo de medidas de ensino à distância e a forma como se querem colocar no terreno de forma apressada parece resultar de uma forma de pensamento mágico que desatende as questões tão proclamadas da “inclusão”. Já li declarações absolutamente aterradoras pela forma como menorizam qualquer pretensão de igualdade de oportunidades em prol de uma espécie de excitado projecto de “escola do século XXI” num país com parte substancial da população abaixo do limiar da pobreza e que, com a presente situação económica, irá por certo aumentar.

Onde estão os arautos da “inclusão” quando precisamos deles?

quarta-feira, 25 de março de 2020

É preciso que comecemos desde já a traçar limites que não devem ser ultrapassados


Covid-19 | Dia 7 – Definir limites

Paulo Guinote

Os tempos de emergência que vivemos, que alguns anunciam como a “oportunidade” para estabelecer um “novo paradigma” educacional, têm vindo, dia após dia, a tornar-se cada vez mais exigentes e, sublinho-o, abusivos na forma como entraram pelo espaço doméstico e pelo tempo privado dos professores.

Tenho um velho telemóvel Samsung de que antigos alunos meus de 5º e 6º ano que já chegaram à Universidade ainda se devem lembrar. Os actuais alunos sorriem e hesitam antes de perguntar porque ainda uso um resquício da idade da pedra digital. Não é por ser um ludita, descansem. É porque ele funciona como uma eficaz defesa contra o excesso de contactos e solicitações que nos cercam e invadem o tempo e espaço de modo cada vez mais abusivo. Faz telefonemas, manda mensagens, fotografa e chega-me.

Mas a maior parte dos meus colegas deixou-se agarrar pelo espírito dos tempos e deixaram-se seduzir e escravizar pelos novos gadgets que quase tudo permitem fazer, mas por isso mesmo tudo permitem que lhes seja exigido.

E os tempos de emergência que vivemos, que alguns anunciam como a “oportunidade” para estabelecer um “novo paradigma” educacional, têm vindo, dia após dia, a tornar-se cada vez mais exigentes e, sublinho-o, abusivos na forma como entraram pelo espaço doméstico e pelo tempo privado dos professores. Mesmo com a defesa do meu velho “dumbphone” tenho passado os dias agarrado ao computador, a preparar “salas virtuais”, a comunicar com colegas, alunos e encarregados de educação, a um ritmo e extensão temporal diária que já me fazem ter saudades do horário tradicional. Em grupos “de apoio a professores” na net, leio colegas a perguntar que modelo de computador devem comprar, que webcam adquirir, se é melhor também mudarem de telefone inteligente. E interrogo-me se este novo paradigma do tele-ensino não será o da servidão digital. Até porque noto que muitos dos que tanto empurram os professores para criarem uma rede que o Estado descurou na última década são os mesmos que estiveram em silêncio ou criticaram a classe docente quando lutou pelos seus direitos laborais, acusando-os de anacronismo, egoísmo e outros ismos.

E que, quase aposto, farão parte dos que, mal passe o vírus, nos virão apresentar um “novo paradigma” de carreira, o do século XXI, em que o digital tornará o professor presencial apenas um “recurso” entre outros.

E contra isso é preciso que comecemos desde já a traçar limites que não devem ser ultrapassados.

terça-feira, 24 de março de 2020

A realidade nem sempre é como os arautos do século XXI proclamam

Covid-19 | Dia 6 – E do lado dos alunos?

Paulo Guinote

Os envelhecidos professores têm procurado parecer o mais jovens e digitais que lhes é possível. São turmas virtuais no Google Classroom, Microsoft Teams, Edmodo ou mesmo no Google Hangouts para comunicar com os alunos ou para contactar com os colegas do Conselho de Turma; são questionários no Quizizz, no Kahoot, no Socrative; são videoconferências no Zoom, directos através do Youtube, grupos no WhatsApp ou Facebook (cuidado com as idades e as questões de privacidade, ok?).

Para uma classe docente que tantos dizem estar parada no tempo, têm sido dias de formação “em contexto” num modo bastante intenso (e tenso). A maioria tem feito o possível por colocar à disposição dos alunos materiais e directrizes para desenvolverem as suas aprendizagens à distância.

O problema?

Qual é o problema que muita gente evita dizer em voz alta?

Não é do lado da “oferta”, que tem motivado queixas pelo excesso de tarefas enviadas pelos professores.

É mais do lado da “procura” e aqui vou escrever muito rapidamente acerca do que me é contado por colegas do Secundário acerca da evidente falta de competências digitais (ou de mera literacia analógica) de alunos que são génios nas apps, mas depois não conseguem compreender o que é um convite para acederem a uma turma do Classroom ou do Teams, como navegar em plataformas bastante simples ou como fazer um questionário do Quizzz numa sessão síncrona. A menos que sejam as tais fichas enviadas por mail, o resto deixa grande parte numa enorme confusão sobre o que é exactamente para fazer e como e metade do tempo é a explicar o funcionamento de tudo aquilo o que se costuma dizer que os alunos dominam com muito mais facilidade do que os envelhecidos docentes.

A realidade nem sempre é como os arautos do século XXI proclamam.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

As contas que o Maurício Brito fez

Maurício Brito - Observador


O apregoado perigo de um “apocalipse financeiro” com os professores, que levou o Primeiro-Ministro a ameaçar com a demissão, produziu uma das mais tristes coreografias assistidas na nossa democracia.

Numa altura em que se debate com alguma ligeireza o fim da vida, permitam-me recuar no tempo com os olhos postos num futuro, aparentemente, pouco radiante. Porque de nada vale preocuparmo-nos com o amanhã se não aprendermos com os erros do passado e se desvalorizarmos as opções tomadas no presente.

630 milhões de euros: era esse o valor que custaria a famosa despesa da contabilização do tempo de serviço congelado dos professores, afirmavam vários membros do anterior (e atual) governo e reproduzia grande parte da nossa comunicação social. Um valor tão alto que, diziam, provocaria a “insustentabilidade das contas públicas”, abriria a mítica “Caixa de Pandora” e provocaria o “caos financeiro” no País. Estranhamente (ou não) um autoproclamado ministério das “contas certas” insistia em não apresentar as contas que permitiriam chegar a esse valor, apesar das inúmeras solicitações de deputados, professores e jornalistas. 630 milhões foram sendo, assim, apresentados e repetidos até a exaustão, de forma a justificar a opção de contabilizar apenas 1/3 do referido tempo, enquanto que uma descomunal barreira de 20 mil milhões de euros para bancos era ultrapassada.

Entretanto, a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) apresentava um relatório, no mínimo, perturbador: deixava claro que eram misturadas despesas com receitas nas mesmas contas, que não eram contemplados os óbvios efeitos nas receitas do Estado que os aumentos salariais produziriam e, registe-se, afirmava que a contabilização do tempo congelado de todas as carreiras (não apenas a dos professores) não colocaria em causa as metas de Bruxelas ou excedentes orçamentais. Enquanto isso, contas efetivamente feitas por um grupo de professores ao qual pertenço permitiam afirmar que a dita despesa não chegaria a 50 milhões de euros anuais, caso fosse aplicada uma solução como a encontrada na Região Autónoma da Madeira. O apregoado perigo de um “apocalipse financeiro”, que levou a que um primeiro-ministro ameaçasse com a demissão do seu Governo, produziu uma das mais tristes coreografias já assistidas na história da nossa democracia.

A contabilização de todo o tempo de serviço congelado acabaria por ser contornada com fórmulas ditas equitativas e números empolados, através de contas nunca feitas, o que permite afirmar que grande parte da argumentação que sustentou a lógica da solução encontrada pelo governo se encontrava num plano extremamente duvidoso. Isto, por sua vez, levanta uma importante questão: não terá a obrigatória seriedade em sede negocial sido desrespeitada pela tutela?

Entretanto, outras contas parecem também não terem sido realizadas, ou, pelo menos, os seus efeitos parecem terem sido totalmente negligenciados: com a contabilização de apenas 1/3 do período de tempo de serviço prestado congelado, estima-se hoje que mais de 60.000 docentes nunca cheguem ao topo da carreira, por melhores profissionais que sejam ou tentem ser. Pior: se nenhuma medida for tomada, milhares de professores ficarão eternamente “presos” nos 4º e 6º escalões, devido à necessidade de obtenção de vaga para a progressão aos 5º e 7º escalões, perspetivando-se uma mais do que compreensível revolta, o avolumar de um já longo e profundo desânimo nas nossas escolas e o surgimento de um indesejável discurso divisionista, que coloca mais novos contra mais velhos, precários contra estáveis e que não contribui em nada para lógicas de trabalho compartilhado e de grupo, essenciais na cultura organizacional da escola.

Urge, assim, encontrar soluções para um problema de inimagináveis consequências, tamanha a frustração de uma classe que se vê, há mais de uma década, a perder poder de compra, a trabalhar mais e mais horas e a não ver reconhecido o seu trabalho. Tudo isto graças à elevação de um sentimento perverso de mesquinhez e inveja numa sociedade carente, produzido por um contínuo discurso anti-corporativista em relação à classe docente, e à ignóbil propagação de inverdades sobre pretensas regalias que nunca existiram. Se somarmos a tudo isto reestruturações da carreira docente feitas, refeitas e as que estão a ser preparadas, sempre tendo como base uma triste lógica economicista – que tem sido o denominador comum de todos os responsáveis políticos desde meados da década de 2000 – e a proletarização da classe docente – desejada por muitos mais do que podemos imaginar –, antevê-se um período negro da educação no nosso país. Hoje, fruto também desses discursos e de todas estas tristes opções, assistimos à escalada de violência nas escolas e à necessidade de contrariar o crescimento do desrespeito por quem tem contribuído, ao contrário do que muitos afirmam, para que Portugal seja caso único de sucesso na área da Educação mundial, comprovado pelos resultados de diversos testes internacionais como os do último PISA.

Para concluir: há mais de 10 anos, os professores foram os primeiros a tentar alertar toda uma nação que estávamos perante um Primeiro-Ministro que utilizava a mentira como arma, sem olhar a meios para atingir os seus abjetos fins. Poucos, então, nos ouviram. Hoje, todos conhecemos as graves acusações que recaem sobre o mesmo. Por isso, e por muito mais, ouçam-nos. Respeitem-nos. Acreditem em quem trabalha, diariamente, com os filhos de hoje. Pelo bem dos filhos do amanhã.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Muda-se tudo menos o que verdadeiramente interessa e está no centro de uma educação de qualidade

Muda-se tudo menos o que verdadeiramente interessa

José Eduardo Lemos - Presidente do Conselho das Escolas

Na Educação, muitas das mudanças introduzidas nos últimos 15 anos não têm sido sinónimo de melhoria, antes demonstrativas de falta de rumo.

A sociedade e o mundo de hoje vivem tempos de acelerada mudança provocada pelos enormes avanços tecnológicos, pela globalização da informação e do conhecimento, pelo digital e pelos novos problemas que condicionam a vida da humanidade, como acontece com as alterações climáticas.

As escolas não escapam a esta tendência e mesmo que, hipoteticamente, alguma não quisesse mudar ou não dispusesse de massa crítica favorável que a impelisse, a força da mudança é inexorável e impõe-se às escolas.

A dependência das escolas portuguesas da Administração Educativa e, nalguns casos, também das Administrações Autárquicas, torna-as reféns, não apenas das políticas, estratégias e decisões dos governantes e autarcas de cada momento, mas também da interpretação que delas faz toda a cadeia hierárquica existente entre estes e as escolas.

Veja-se as mudanças introduzidas nos últimos 15 anos nos programas, metas, aprendizagens, currículos... Veja-se a sucessão de Projetos, Planos e Estratégias disto e daquilo para “salvar” as escolas e os alunos. Alguns com a curiosa particularidade de diagnosticarem as doenças do sistema educativo, de se apresentarem como os melhores remédios para as curar e por avaliarem os resultados obtidos, ainda antes de finalizada a prescrição. Todos nos lembramos dos admiráveis contratos de autonomia, dos Fénix e Turma Mais, dos revolucionários quadros interativos ou, mais recentemente, do “Teach for Portugal”, do Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar e do, também com qualidades salvíficas, projeto de autonomia e a flexibilidade curricular.

Todos vieram introduzir mudanças nas escolas e, contudo, ninguém sabe para que lado está o norte.

Se não surpreende que, em cada momento, os governantes surjam no espaço público a falar de mudanças e a tentar implementá-las – faz parte –, já me espanta vermos dirigentes da administração, diretores das escolas, professores, alunos, especialistas, enfim, a seguirem atrás dessas mudanças e das “novas” ideias, algumas com décadas, como se, agora sim, resolvessem os problemas que as mudanças que anteriormente seguiram com a mesma devoção afinal não resolveram.

Defendem que a escola deve preparar os jovens para lidar com o desconhecido, com o que está para vir, não percebendo, ou fazendo-se despercebidos, que uma escola que prepara os alunos para o desconhecido e para exercerem profissões que ainda não existem, como dizem, é uma escola que não pode ser escrutinada nem avaliada, nem responsabilizada na exata medida em que, faça o que fizer, estará sempre alinhada com o vento que soprar.

As mudanças da moda têm os mesmos traços que as anteriores: a ideia de que o que o que se fazia até surgirem na agenda educativa estava errado ou não promovia as boas aprendizagens; a ideia de que as atuais mudanças se constituem como novidades quando, na verdade, verificamos que se resumem a velhas práticas, já estudadas, implementadas no passado e abandonadas, precisamente, porque os resultados dos alunos ficavam nos patamares mais baixos dos indicadores internacionais; a terceira é a ideia de que mudança é sinónimo de melhoria. Ora, nos últimos 15 anos sucederam-se várias e a última veio sempre resolver as incapacidades da antecedente, o que prova à saciedade que muitas das mudanças não têm sido sinónimo de melhoria, antes demonstrativas de falta de rumo.

São recorrentes o apressado planeamento e a deficiente operacionalização das mudanças, pelo que muitas delas surgem aos olhos dos destinatários bastante desarticuladas e com objetivos impercetíveis, o que obriga a administração a produzir sucessivos esclarecimentos e regras interpretativas que permitam às escolas implementá-las.

A título de exemplo, veja-se a incongruência entre as cargas horárias dos alunos dos 10.º/11.º anos e do 12.º ano; veja-se a desarticulação entre as competências previstas no Perfil dos Alunos e a formação inicial de professores e as normas de constituição e funcionamento de turmas, de distribuição do serviço e organização do ano letivo; compagine-se a política de reutilização de manuais escolares com os espaços para escrita e colagem; veja-se a chocante falta de equidade entre escolas públicas com instalações de categoria europeia e, mesmo ao lado, escolas públicas com amianto e onde chove. Enfim, muda-se muito, mas melhora-se pouco!

Sintomaticamente, não se vê nenhuma nova ideia para melhorar a qualidade da formação inicial dos professores, nem para melhorar as suas condições de trabalho (muitos são agredidos no trabalho), muito menos o seu estatuto socioprofissional. Nem sequer se veem ideias para assegurar o direito básico de todos os alunos terem professor. Ou seja, muda-se tudo menos o que verdadeiramente interessa e está no centro de uma educação de qualidade.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

A opinião de Santana Castilho

Santana Castilho

1. Um vídeo mostrando um rosto limpo, antes da imobilização feita com brutalidade inaceitável por um polícia, um rosto deformado por hematomas, feridas com sangue pisado, olhos e lábios inchados, depois, a mulher acusando o polícia e o polícia acusando a mulher no fim, foi tema de muitas análises. Não vi nenhuma sobre o que terá ficado gravado na psique da criança de oito anos, que assistiu à brutalidade exercida sobre a mãe. Mas desejo que um dia, já adulta, esteja livre de qualquer trauma, provocado pela sociedade em que começou a viver. Como o palhaço triste de Gotham, metaforicamente afundada no lixo moral que o transformou no vilão do Joker.

2. O fenómeno da penetração da extrema-direita nas nossas forças de segurança (foi o Conselho da Europa que o disse) deve ser encarado com urgência, porque as repetidas suspeitas sobre a actuação de alguns dos seus membros degradam o Estado de direito.

O que é socialmente mais preocupante? Transportar sem passe uma criança, que legalmente está isenta de pagamento, ou ver escrito, em relatório europeu, que a corrupção impune em Portugal vale 18 mil milhões de euros por ano? Por que razão nunca vi um polícia à bastonada com trânsfugas fiscais ou banqueiros que nos roubaram no BES, BANIF ou BPN? Como interpretar que o CDS-PP se tenha apressado a manifestar total confiança no vice-presidente do partido, logo que se tornaram públicas declarações suas de elogio a Salazar e à PIDE e referindo Aristides de Sousa Mendes como um "agiota de judeus"?

3. Parece que a maioria parlamentar pensante achou que era melhor fazer de conta que um deputado não tinha recomendado a deportação de uma deputada, com o argumento de que censurá-lo no hemiciclo seria dar-lhe importância e mais palco.

Não gosto de políticos que reagem a quente, primeiro, para se esconderem a frio, depois. À indignidade de um deputado, a decência dos pares responde sempre. A minha República tem de ser clara e não se esconde com medo de dar palco às graçolas racistas de um deputado.

4. Durante a recente celebração dos 75 anos da libertação dos sobreviventes de Auschwitz, o presidente alemão referiu-se assim ao seu país: “Quem me dera poder dizer que os alemães aprenderam com a história. Mas não posso dizer isso quando o ódio se está a espalhar. E não posso dizer isso quando crianças judias são cuspidas nas escolas”.

Que a clarividência de Frank-Walter Steinmeier nos mobilize para rejeitar a normalização dos comportamentos racistas, homofóbicos e xenófobos, venham eles donde vierem. Particularmente porque aqueles a quem se referiu, os que cospem em crianças, são certamente outras crianças, que já crescem ensinadas a odiar. Simplesmente aterrador. Se nas escolas formos escusos como fomos na AR, então ficará livre o caminho para os que promovem o retrocesso civilizacional e cultural, manipulando as múltiplas frustrações sociais. Numa palavra: a democracia não pode ser tolerante com aqueles que a querem destruir.

5. Que sociedade estamos a criar? As redes sociais são hoje uma montra da degradação da convivência entre humanos. A violência verbal e os discursos de ódio são o novo normal para políticos emergentes agradarem aos prosélitos. Fomos ouvindo, mais longe, Le Pen, Trump, Bolsonaro, Salvini e Orbán, agora temos aqui perto Santiago Abascal e cá dentro Ventura. É altura de pararmos para pensar. Porque existem, todos eles?

Porque existe a insegurança no emprego e o medo do desemprego. Porque em nome da produtividade, o tempo de trabalho tornou-se brutal. Porque as pessoas sentem a vida ameaçada e o futuro dos filhos sem horizontes. Porque a injecção continuada do dinheiro público no sistema financeiro manteve a ganância do capitalismo global. Porque ao neoliberalismo de direita sucedeu o neoliberalismo de uma falsa esquerda, que apenas aligeirou a austeridade e não entendeu que as desigualdades sociais se combatem com emprego com direitos, que não com assistencialismos castradores.

Marques Mendes falou, no domingo passado, de um mundo de pernas para o ar porque um fura-greves foi punido quando, no entender dele, deveria ter sido louvado. Eu vejo-o de pernas para o ar pelo que aqui escrevi e porque não estamos a construir uma sociedade diferente a partir da Escola.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Muda-se tudo menos o que verdadeiramente interessa e está no centro de uma educação de qualidade

A Intervenção do Presidente do Conselho das Escolas, José Eduardo Lemos,  no Fórum Educação e Mudança 2020

"Sintomaticamente, neste turbilhão de mudanças, não se vê nenhuma nova ideia para melhorar a qualidade da formação inicial dos professores, nem para melhorar as suas condições de trabalho (como se não bastasse os baixos salários, muitos são agredidos no trabalho), muito menos o seu estatuto socioprofissional. Nem sequer se veem ideias para assegurar o direito básico de todos os alunos terem professor. Ou seja, muda-se tudo menos o que verdadeiramente interessa e está no centro de uma educação de qualidade."

"Mudança: Conhecer o rumo, segurar o leme"

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Professores em regime de monodocência com mais de 60 anos podem deixar de dar aulas

Por que surge a possibilidade de os docentes do pré-escolar e 1.º ciclo mais velhos poderem trocar as aulas por outras atividades escolares? Que outras atividades desempenharão para garantir o aproveitamento pleno das suas capacidades profissionais? O que leva os sindicatos a duvidarem desta intenção? 

Estas são algumas das questões que se levantarão no interior de cada docente para entender o motivo da possibilidade desta medida ser implementada. Em meu entender, teremos de recuar a 8 de junho de 2017, aquando da discussão da idade da reforma, no debate quinzenal da Assembleia da República, e no qual o 1.º ministro tem a seguinte intervenção: “…relativamente à idade de reforma, aquilo que é entendimento pacífico é que não deve haver alterações nessa idade, deve haver sim, uma alteração e criar condições, para que possa haver um conteúdo funcional distinto, em particular, relativamente àquelas situações onde há efectivamente discriminação, que tem a ver com situações de monodocência que não beneficiam de redução de horário.” Posteriormente, o programa do governo confirma: “Sem contrariar a convergência dos regimes de idade da reforma, encontrar a forma adequada de dar a possibilidade aos professores em monodocência de desempenhar outras atividades que garantam o pleno aproveitamento das suas capacidades profissionais”. 

Agora, a secretária de Estado da Educação, Susana Amador, esclareceu que existe a possibilidade de os professores monodocentes com mais de 60 anos poderem deixar de dar aulas, se quiserem, e passar a exercer outras atividades na escola. Adiantou que se pretende explorar cenários que permitam aos professores após os 60 anos desempenhar outras atividades, garantindo o pleno aproveitamento das suas capacidades profissionais. Deu como exemplo fazer mentoria aos mais novos ou ajudar os professores titulares a fazer o diagnóstico e as causas das dificuldades de aprendizagem. Também acrescentou que a medida não está ainda calendarizada, mas que será implementada ao longo desta legislatura. A medida será estudada por um grupo de trabalho que fará o diagnóstico, a calendarização, o número de pessoas abrangidas e quais as atividades onde podem ser potenciadas no campo do ensino. Os sindicatos mostram-se muito cautelosos relativamente a esta matéria, colocam muitas reticências e entendem que a medida deve ser “estudada”. Vêem, por enquanto, gorada a sua reivindicação da reforma antecipada dos professores para 60 anos de idade. João Dias da Silva da FNE considera que deixar as aulas “não é a solução”, mas sim uma "solução de recurso". Mário Nogueira da FENPROF concorda com o regime especial, mas considera que não será fácil colocá-lo em prática. 

Entretanto, há pontos que entendo como fulcrais e imprescindíveis. Se a tutela entende que não se deve contrariar a convergência dos regimes de idade da reforma e tendo em conta o desgaste provocado pela atividade profissional docente, poder-se-á iniciar por compensar aqueles professores que tiveram um apagão completo das 9 A 4M 2D, não tendo beneficiado de qualquer dia da recuperação dos 2A 9M 18D. Assim sendo, todos os docentes independentemente do ciclo ou nível de ensino deveriam beneficiar pelo menos de 50% dos 2A 9M 18D para efeitos de aposentação. Esta decisão seria, no mínimo, uma elementar justiça para estes docentes e reduziria o número de professores a beneficiar desta medida, atendendo ao facto da elevada percentagem de mondocentes com mais de 60 anos. 

Relativamente à medida em si, os monodocentes com mais de 60 anos que optarem por deixar de dar aulas deveriam beneficiar da concessão de dispensa total da componente letiva, não havendo de forma explícita apoios educativos (individual ou em grupo), coadjuvações ou substituições. A componente não letiva de estabelecimento ser limitada a vinte e cinco horas semanais. Aceitar o preconizado pela secretária de estado relativamente à mentoria aos colegas mais novos ou ajudar os professores titulares a fazer o diagnóstico e as causas das dificuldades de aprendizagem. Assim como estabelecer outras funções nomeadamente, as atividades previstas nas alíneas d), f), g), i), j) e n) do n.º 3 do artigo 82.º do ecd, que atualmente já são prescritas para a dispensa da componente lectiva no n.º 7, do artigo 79.º. 

Tratam-se apenas de algumas sugestões, entretanto aguardemos pelas próximas reuniões negociais entre a tutela e os sindicatos. Será caso para dizer que muita água passará debaixo da ponte até esta medida se consolidar.
José Carlos Campos