Mais um excelente texto sobre o estado da nossa educação, da autoria do
Paulo Prudêncio. Leitura a não perder!
"Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem", escreveu José Saramago na última página do Ensaio sobre a Cegueira. Pois bem, o longo processo que nos levou à falta estrutural de professores deu sinais de cegueira, de uma cegueira que, vendo, teimava em não querer ver. Agora, o grande desafio é ver o passado, reverter as mudanças que nos empurraram até aqui e seguir pelo universo das incertezas.
E se na Cegueira das bolhas política e mediática já ninguém vê como alarmista o discurso que via, há quase duas décadas, as consequências da desvalorização do estatuto socioeconómico dos professores e da desautorização do seu exercício, também ninguém se pode queixar de falta de tempo e de espaço legislativos. Nesse período, Portugal viveu com governos de maioria parlamentar.
Se os governos de José Sócrates (2005 e 2009) aplicaram "cegamente" os quatro eixos da "batalha entre todos" que adoeceu milhares de professores (carreira, farsa avaliativa, gestão autocrática e burocracia como inferno de desconfiança), o de Passos Coelho (2011) cortou "cegamente" (horários dos professores ao minuto e com mais turmas, mega-agrupamentos de escolas, cortes curriculares e mais alunos por turma) e provocou o maior "despedimento" colectivo em Portugal: 27.941 professores (
Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência: de 141.452 em 2010/2011 para 113.511 em 2015/2016). Os governos de António Costa (2015, 2019 e 2022), os dois primeiros com o ministro da educação com mais anos na pasta nos 50 anos de democracia, nada viam das mudanças fatais, mas viam a não recuperação do tempo de serviço e "cegavam" com inutilidades informacionais e curriculares.
Mas, questionará o leitor, não houve diferenças nesse pacto "cego" de regime para a proletarização dos professores? Houve diferenças, claro que houve. Mas em indicadores tecnocráticos menos determinantes para a crise vigente: avaliação externa das aprendizagens, rankings de escolas e duas exorbitâncias curriculares com tiques dos totalitarismos do século XX: à direita o "ler, escrever e contar" e à esquerda os inúmeros projectos político-ideológicos não disciplinares mais reconhecidos do que o exercício lectivo.
Aliás, inscrever proletarização e século XX requer que se repita o óbvio: não se proletariza grupos numerosos sem a cumplicidade de nomenclaturas. E a cegueira na educação portuguesa ancorou-se numa casta subserviente com os superiores hierárquicos e, em regra, distante da sala de aula. Instalada no ministério e nas escolas, criou o infernal clima escolar enquanto anunciava excesso de trabalho e insubstitualidade. Essa tragédia atemorizou governantes menos preparados, com um lado cómico retratado na célebre sitcom britânica "
Yes Minister" emitida também na
RTP1.
Sair daqui, num tempo de
aumento brutal das desigualdades educativas, é um gigantesco desafio para a sociedade. O imperativo constitucional do acesso ao ensino pressupõe a existência de professores e sabe-se que nesta década já não se formarão os necessários. Na verdade, haverá o risco de queda em visões simplistas que não distingam o intemporal do circunstancial.
É, por isso, fundamental que se conheçam os desesperos em debate no Ocidente: menos dias de aulas por semana, menos horas diárias na escola, turmas para 60 alunos, eliminação de disciplinas, certificação acelerada de professores, monodocência (modelo do 1º ciclo) para a totalidade do ensino não superior coadjuvada por máquinas e conteúdos digitais e, em negócios mais radicais, substituição literal de professores por máquinas.
Além disso, e para além de se apelar a professores com mais de 65 anos de idade ou a bolseiros de investigação, o caminho será cativar os que estão em funções, tentar recuperar os milhares de desistentes e concretizar programas de atractividade do exercício.
Mas não chega. É crucial oxigenar o clima escolar, mas sem as habituais alterações que deixam imutável o essencial que se identificou. Para que dentro de uns anos se vejam resultados positivos, exige-se que se reconheça a escola, essa notável invenção, como uma realidade social. A sua intemporalidade assenta num somatório de triângulos com dificuldades e complexidades crescentes: que cooperam, que nunca contendem entre si e que têm como vértices o professor, os seus alunos e os mediadores da relação: conhecimentos, destrezas, valores, atitudes e tecnologias. Assumi-lo é a melhor forma de enfrentar incertezas e nomenclaturas.
Acima de tudo, conclua-se que a cegueira abriu as portas à prevalência dos agentes do mal. Não há muitas formas mais óbvias para o descrever. Reverta-se com humildade. É um tempo grave e complexo, que convoca uma visão para além dos muros das escolas. Martin Wolf (2023:XIV), em a "A Crise do Capitalismo Democrático", ilumina o cenário: "Os seres humanos separam naturalmente as pessoas entre aquelas que pertencem à "sua" tribo e as de fora. Massacram alegremente estas últimas. Sempre fizeram isso. Nunca tomei a paz, a estabilidade ou a liberdade como garantidas, e considero insensatos os que assim o fazem." Aliás, o recente r
elatório Draghi eleva dois vocábulos essenciais à humanidade, à escola e ao futuro da Europa: comum e partilha.