Escrevo-lhe, num momento especialmente delicado para o ensino, em Portugal. A Escola, em degenerescência ininterrupta há década e meia, expõe agora, aos olhos de toda a gente, a doença que os professores, incansavelmente, têm denunciado, sob o olhar incrédulo dos políticos, da sociedade em geral e até de alguns pseudopedagogos. Agora, as evidências tornam insofismável aquilo que, até aqui, foi sendo negado e iludido. A grave falta de professores e de jovens que queiram abraçar esta nobre profissão é disso sintoma. Mas é um mero sintoma, Sr. Ministro, não é a doença. Essa mora bem fundo, no corpo e na alma dos professores!
Na verdade, V.ª Excelência tem, pela frente, uma missão extremamente delicada e dura. Está, no presente, a confrontar-se com o mais rotundo fracasso das inúmeras medidas que têm (des)norteado o ensino desde 2005. Era um desfecho previsível, Sr. Ministro, porque as decisões foram quase sempre tomadas à revelia dos professores, apesar dos professores e contra os professores. Quase sempre se decidiu, ignorando a opinião dos docentes, com base num infundado preconceito relativamente à qualidade da sua formação e ao seu profissionalismo. Mas não se trata de uma herança absoluta, porque o Sr. Ministro há vários anos que participa, determinantemente, na idealização e na tomada de decisões, nomeadamente no âmbito da flexibilidade e da inclusão.
No meu entender, V.ª Excelência tem dois caminhos possíveis: entrar em negação, como fizeram os seus antecessores, não pondo em causa o “património” governativo herdado (não aconselho); assumir a falência do paradigma adotado e divergir, restaurando as vias do diálogo (que já iniciou), da colaboração e da confiança. Enfim, decidir com os professores e não contra eles, como fez quem o precedeu. Se, como dizem, é profundo conhecedor do “terreno”, então deverá saber que nenhuma reforma vingará, se não for íntima e genuinamente adotada pelos professores. Pense bem, Sr. Ministro: o caminho até aqui seguido foi tão corrosivo, tão destrutivo, tão esmagador, que quem está quer ir embora e já quase não há quem queira exercer esta profissão. Essa avaliação é demolidora e incontornável.
Face à grave carência de professores e ao triste cenário que nos aguarda, já no próximo ano letivo, V.ª Excelência está (e bem) a tentar estancar esta perigosa hemorragia, pelo completamento dos horários, pela redução da precariedade contratual e outras eventuais respostas imediatas, em articulação com os sindicatos, que tem estado a ouvir. Todavia, Sr. Ministro, esta é apenas uma manifestação superficial da profunda e gravíssima doença que afeta o ensino, em Portugal. As questões concursais, contratuais e salariais são, obviamente, muito relevantes, mas serão, na minha perspetiva, insuficientes para a cura que o presente reclama e o futuro impõe. Embora importantes, os contratos e os salários não podem nem devem ser o principal motivo de apelo para esta profissão. Se assim for, o Sr. Ministro correrá o risco de ter todas as vagas preenchidas, concorridas bolsas de recrutamento, mas não ter os professores que a Escola merece e de que precisa. Falo de satisfação, de realização profissional, Sr. Ministro, expressões que caíram de tal forma em desuso, que já parecem arcaísmos. Desconfie de quem lhe disser o contrário. É este o âmago da doença que V.ª Excelência é chamado a tentar curar. E é sobre essa delicada terapia que eu venho falar-lhe.
Como referi, as questões contratuais e salariais explicam apenas uma pequena parte do problema. Caso contrário, não teríamos tantos professores — do quadro, com vinte e cinco, trinta e mais anos de serviço — a quererem abandonar a profissão, a desejar uma pré-reforma ou a reforma antecipada, mesmo com significativos cortes na pensão (é o meu caso). Para reverter a atual tendência, é necessário, portanto, atacar sobretudo as causas. Se não o fizer, poderá dedicar o seu mandato a prestar bons cuidados paliativos, mas jamais curará ou dará mais esperança de vida ao doente.
Os seus antecessores — uns mais, outros menos, é claro — transformaram o quotidiano dos professores num autêntico inferno povoado de um sem-número de tarefas (muitas das quais absolutamente inúteis, saturantes e até estupidificantes), de muito ruído instalado na relação pedagógica com os alunos e de muitas perversidades a adormecerem a sua força de vontade, a sua ambição, logo, o seu desenvolvimento a exponenciação das suas capacidades. O que mais tortura os professores e os torna mais infelizes é constatarem que, de dia para dia, os alunos vão perdendo a vontade, a capacidade e o prazer de ouvir, de escutar, de estudar, de aprender, de querer melhorar, de ambicionar. Alguém lhes “disse” que tal não é preciso. Contudo, nunca os professores trabalharam tanto, na escola, em casa e pelo caminho. Algo está gritantemente errado, não acha, Sr. Ministro?
É necessário, urgentemente, libertar os professores da burocracia com que foram amarrados e forçados a incrementar artificialmente o sucesso. Todos sabemos a sua aparente inocuidade tem funcionado muito bem como castigo. Falo, entre outras inutilidades, da extensa parafernália documental associada à flexibilidade, à inclusão, à planificação pedagógica, de que é sumo exemplo Projeto Curricular de Turma. Para que serve, de facto, um PCT, Sr. Ministro, senão para sobrecarregar de trabalho os professores? Não faz sentido, em 99,9% dos casos. Quem é que, de facto, dá verdadeira importância a este mono pedagógico? Ninguém. Liberte, definitivamente, os professores deste calvário inútil. Faz ideia da quantidade de horas que os professores dedicam a inutilidades como esta? O mesmo sucede com pretendida inclusão, que traz consigo um fastidioso séquito burocrático. Faz sentido em casos excecionais, mas perde-o completamente quando se verifica que são cada vez mais os alunos que dela precisam, multiplicando os respetivos documentos, as respetivas medidas, o tempo necessário para as definir e implementar, enquanto quase tudo se vai tornando cada vez mais impossível, na prática, porque, em muitas escolas, chegamos a ter, na mesma turma, mais de metade dos alunos nesta situação, a requererem diferenciação, individualização, reforço, etc. Quer-me parecer que o atual contexto pedagógico semeia esta necessidade.
Sr. Ministro, simplifique generosamente o quotidiano dos professores, liberte-os, devolva-lhes a autonomia pedagógica que já tiveram, dê-lhes condições para terem dignidade no trabalho fazem: devolva algum sentido de justiça à avaliação dos professores e à progressão na carreira; defina um limite para o número de alunos por professor (há casos revoltantes); limite também o número de turmas por professor (há muitos casos insuportáveis); devolva às faltas dos alunos a responsabilidade e o valor pedagógico que devem ter (atualmente, só servem para dar trabalho aos diretores de turma e para deseducar os jovens); devolva à avaliação dos alunos um patamar de exigência mínimo, que os estimule a estarem atentos, a empenharem-se seriamente nas atividades escolares, a estudarem, a exigirem mais de si mesmos, a serem mais ambiciosos. Enfim, devolva-lhes o inestimável valor da responsabilidade, do trabalho e do esforço quotidiano, uma escola que prepare melhor para a vida. Devolva à nossa profissão o respeito e a dignidade que ela já teve e que merece. Merece a profissão, merecem os professores, que tão abnegadamente a servem, e merece o país.
Já vai demasiado longa esta missiva. E muito ficou por dizer. No entanto, permita-me apenas mais uma importante sugestão, antes de concluir. V.ª Excelência tem estado a ouvir os sindicatos, e já visitou inúmeras escolas do país. Todavia, neste seu já longo périplo pelo “terreno escolar”, receio que não tenha tido oportunidade efetiva de escutar as vozes dissonantes, aquelas que são capazes de dizer que o rei vai nu. Sugiro-lhe, pois, que escute também os professores que, há década e meia, ininterruptamente, incansavelmente, corajosamente, têm dedicado inúmeras hora do seu tempo livre a pugnar pela melhor qualidade da Escola Pública. Convide os bloguistas do ensino para um anfiteatro e escute, de boa-fé e com toda a atenção, o que eles têm a dizer-lhe. Acredite, Sr. Ministro: esse poderá ser o momento-chave do seu mandato.
Termino como iniciei. O ensino só dará os primeiros sinais consistentes de cura da grave doença de que padece, não quando as vagas a concurso começarem a ser preenchidas, mas quando os nossos jovens — aqueles que veem e conhecem efetivamente o calvário em que vivem os seus professores — recomeçarem a desejar seguir esta tão nobre profissão. No entanto o sinal inequívoco da sua cura só será dado quando os filhos dos professores voltarem a querer ser professores. Nesse momento, sim, será possível dar alta ao doente.
Trata-se, indubitavelmente, de uma missão demasiado ambiciosa para um mandato. Mas o mais importante é ter um bom astrolábio e seguir o rumo certo. Desejo-lhe, pois, um excelente trabalho, Sr. Ministro.