quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

As contas que o Maurício Brito fez

Maurício Brito - Observador


O apregoado perigo de um “apocalipse financeiro” com os professores, que levou o Primeiro-Ministro a ameaçar com a demissão, produziu uma das mais tristes coreografias assistidas na nossa democracia.

Numa altura em que se debate com alguma ligeireza o fim da vida, permitam-me recuar no tempo com os olhos postos num futuro, aparentemente, pouco radiante. Porque de nada vale preocuparmo-nos com o amanhã se não aprendermos com os erros do passado e se desvalorizarmos as opções tomadas no presente.

630 milhões de euros: era esse o valor que custaria a famosa despesa da contabilização do tempo de serviço congelado dos professores, afirmavam vários membros do anterior (e atual) governo e reproduzia grande parte da nossa comunicação social. Um valor tão alto que, diziam, provocaria a “insustentabilidade das contas públicas”, abriria a mítica “Caixa de Pandora” e provocaria o “caos financeiro” no País. Estranhamente (ou não) um autoproclamado ministério das “contas certas” insistia em não apresentar as contas que permitiriam chegar a esse valor, apesar das inúmeras solicitações de deputados, professores e jornalistas. 630 milhões foram sendo, assim, apresentados e repetidos até a exaustão, de forma a justificar a opção de contabilizar apenas 1/3 do referido tempo, enquanto que uma descomunal barreira de 20 mil milhões de euros para bancos era ultrapassada.

Entretanto, a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) apresentava um relatório, no mínimo, perturbador: deixava claro que eram misturadas despesas com receitas nas mesmas contas, que não eram contemplados os óbvios efeitos nas receitas do Estado que os aumentos salariais produziriam e, registe-se, afirmava que a contabilização do tempo congelado de todas as carreiras (não apenas a dos professores) não colocaria em causa as metas de Bruxelas ou excedentes orçamentais. Enquanto isso, contas efetivamente feitas por um grupo de professores ao qual pertenço permitiam afirmar que a dita despesa não chegaria a 50 milhões de euros anuais, caso fosse aplicada uma solução como a encontrada na Região Autónoma da Madeira. O apregoado perigo de um “apocalipse financeiro”, que levou a que um primeiro-ministro ameaçasse com a demissão do seu Governo, produziu uma das mais tristes coreografias já assistidas na história da nossa democracia.

A contabilização de todo o tempo de serviço congelado acabaria por ser contornada com fórmulas ditas equitativas e números empolados, através de contas nunca feitas, o que permite afirmar que grande parte da argumentação que sustentou a lógica da solução encontrada pelo governo se encontrava num plano extremamente duvidoso. Isto, por sua vez, levanta uma importante questão: não terá a obrigatória seriedade em sede negocial sido desrespeitada pela tutela?

Entretanto, outras contas parecem também não terem sido realizadas, ou, pelo menos, os seus efeitos parecem terem sido totalmente negligenciados: com a contabilização de apenas 1/3 do período de tempo de serviço prestado congelado, estima-se hoje que mais de 60.000 docentes nunca cheguem ao topo da carreira, por melhores profissionais que sejam ou tentem ser. Pior: se nenhuma medida for tomada, milhares de professores ficarão eternamente “presos” nos 4º e 6º escalões, devido à necessidade de obtenção de vaga para a progressão aos 5º e 7º escalões, perspetivando-se uma mais do que compreensível revolta, o avolumar de um já longo e profundo desânimo nas nossas escolas e o surgimento de um indesejável discurso divisionista, que coloca mais novos contra mais velhos, precários contra estáveis e que não contribui em nada para lógicas de trabalho compartilhado e de grupo, essenciais na cultura organizacional da escola.

Urge, assim, encontrar soluções para um problema de inimagináveis consequências, tamanha a frustração de uma classe que se vê, há mais de uma década, a perder poder de compra, a trabalhar mais e mais horas e a não ver reconhecido o seu trabalho. Tudo isto graças à elevação de um sentimento perverso de mesquinhez e inveja numa sociedade carente, produzido por um contínuo discurso anti-corporativista em relação à classe docente, e à ignóbil propagação de inverdades sobre pretensas regalias que nunca existiram. Se somarmos a tudo isto reestruturações da carreira docente feitas, refeitas e as que estão a ser preparadas, sempre tendo como base uma triste lógica economicista – que tem sido o denominador comum de todos os responsáveis políticos desde meados da década de 2000 – e a proletarização da classe docente – desejada por muitos mais do que podemos imaginar –, antevê-se um período negro da educação no nosso país. Hoje, fruto também desses discursos e de todas estas tristes opções, assistimos à escalada de violência nas escolas e à necessidade de contrariar o crescimento do desrespeito por quem tem contribuído, ao contrário do que muitos afirmam, para que Portugal seja caso único de sucesso na área da Educação mundial, comprovado pelos resultados de diversos testes internacionais como os do último PISA.

Para concluir: há mais de 10 anos, os professores foram os primeiros a tentar alertar toda uma nação que estávamos perante um Primeiro-Ministro que utilizava a mentira como arma, sem olhar a meios para atingir os seus abjetos fins. Poucos, então, nos ouviram. Hoje, todos conhecemos as graves acusações que recaem sobre o mesmo. Por isso, e por muito mais, ouçam-nos. Respeitem-nos. Acreditem em quem trabalha, diariamente, com os filhos de hoje. Pelo bem dos filhos do amanhã.

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