Francisco Teixeira
Vivemos uma interrupção. Adaptemo-nos a isso sem transformar o anormal em novo normal, sem fetichismos que separem o nosso desejo da coisa verdadeiramente desejada: um país e um sistema de educação justos e decentes, intelectualmente honestos, que não transige da ideia de igualdade e que não deixa ninguém para trás.
O ensino à distância existe, de há muito, para adultos ou jovens adultos e para pequenos grupos de crianças ou jovens em condições específicas. Acontece que é tudo menos consensual até que ponto os seus resultados são justos e democráticos. De qualquer modo (e destrunfando esse debate), a ideia que se pode desenvolver ensino à distância, simultaneamente, para centenas de milhares de alunos, particularmente hoje, em Portugal (mas podia ser em geral), não faz sentido pelas razões que passo a apresentar.
A primeira razão é que uma parte substancial dos alunos portugueses não tem condições materiais e tecnológicas para ter ensino à distância. Simplesmente não têm ligação à internet. Há quem diga que são 5%. Mas muitos mais têm ligações tão fracas, do ponto de vista tecnológico, que é como se não tivessem. Ou, em imensos casos, não têm webcams, impressoras, colunas de som. Ou têm pacotes de dados limitados.
A segunda razão é que muitos professores também não têm ligações à internet em condições mínimas de qualidade, de modo semelhante aos alunos.
A terceira razão é que mesmo muitos dos alunos e professores que têm boas ou razoáveis ligações à internet só têm um computador e vivem em famílias com vários outros elementos que também precisam, na atual situação (ou noutra de uma suposta generalização do ensino à distância), de estar ligados à internet, e não é possível compatibilizar os interesses e necessidades de todos.
A quarta razão é que não é possível, a cada professor, ensinar à distância os seus cerca de 100/150 alunos (nalguns casos 250 alunos), mesmo equipados com ligações tipo NSA, já que a relação ensino-aprendizagem tem uma dimensão pessoal/analógica, e prática (de organização social de grupo), que não é compatível com a velocidade das relações vídeo, áudio, de e-mail ou baseada em plataformas online, a não ser que os alunos e professores se esmagassem em corridas insanas de plataforma para plataforma, de e-mail para e-mail, aos milhares por semana.
A quinta razão tem a ver com a própria natureza do ensino/aprendizagem, de algum modo apontada no parágrafo anterior. A gestão das relações ou emoções é essencial, no sentido mais estrito da palavra, à prática do ensino de crianças e jovens. Ensinar quer dizer dispor (gerir) as emoções dos alunos e do professor de modo a que os alunos possam aprender. Ora, isso exige um tipo de relação analógico/presencial que o digital não permite. Bem entendido, o digital pode, e deve ser, um dos instrumentos da relação ensino/aprendizagem. Mas dizer que pode ser o único instrumento, e substitutiva da relação presencial docente, vai contra todo o conhecimento adquirido. Isso não quer dizer que os alunos não aprendessem coisas, numa espécie de distopia digital, sem professores humanos à mistura. Certamente que aprenderiam. Viver é aprender e enquanto não estivessem mortos estariam vivos (como certos filósofos bem sabem). Mas aprenderiam coisas complemente diferentes das que aprendem hoje. Uns aprenderiam umas coisas, outros aprenderiam outras e a desigualdade instalar-se-ia de um modo definitivo e crescente, com um alto clero erudito e hípereficaz para um lado e um lumpemproletariado digital para o outro, dependendo das aplicações ou da mélange (leia-se o Dune, de Frank Herbert) a que tivessem acesso (ver o Parasitas, de Bong Joon-ho, por estes dias, também dá muito jeito, apenas como indicação).
Uma sexta razão tem a ver com a avaliação dos alunos. Sendo tão discrepantes as condições dos alunos num ensino à distância generalizado, a ideia de uma avaliação sumativa é simplesmente absurda e mesmo a avaliação puramente qualitativa não poderia ser realizada a não ser de modo… altamente imaginativo.
A sétima razão tem a ver com a privacidade dos dados dos alunos e dos professores. Acontece que nada na internet o garante, e isso não é, de todo, coisa de somenos. O treino de ser vigiado e o híperpanoptismo em que vivemos dispensa bem que sejam os Estados, os pais e os professores a treinar os seus filhos e alunos a ser vigiados sem limite, dispondo da sua vida não se sabe para quem.
Muitas outras razões se poderiam somar às anteriores, contra a hybris dos tele-ducadores e do mercandejar de serviço, à disposição, rapidamente e em força, da insegurança e medo das famílias. Fiquemos por aqui.
Esta crise é uma interrupção. Certamente gerará efeitos não esperados e outros mais ou menos à vista (como os de uma depressão económica e social, cruel, a aproximar-se, contra a qual e na qual teremos que lutar. Talvez seja de começar a preparar as crianças e os jovens para isso mesmo). Mas não gerará uma Revolução nem sequer uma revolução (por exemplo, a revolução do federalismo europeu, pelo qual valia a pena verter um pouco de sangue e lágrimas). Se assim é, a crise tem que ser tratada como uma interrupção, como um mal biológico e social que vem e que há de ir, até ao próximo, para o qual, espera-se, estaremos melhor preparados (em favor de uma catastrofologia, espero bem que fiquemos simplesmente à espera da próxima).
O que fazer, então, com as escolas, os professores e os alunos, durante o terceiro período?
A famosa função social da escola não é a de guardar as crianças e os jovens. Mas não há como, neste momento particular, não pedir à escola que mantenha os seus alunos ligados, quanto possível, à ideia e prática do estudo, da leitura, da exploração intelectual, da solidariedade e da justiça. Ora, no tempo que falta para o fim do ano letivo, isso não se faz com o débito dos conteúdos em falta, com estratégias manhosas de avaliação, com lógicas de rédea curta digital que não podem senão decair em falsificação generalizada, com ou sem Excel. A minha opção é de que a escola deve manter com os alunos uma relação cultural e social de largo espetro. Como os antibióticos.
Cada turma deve ter, por semana, uma ou duas relações privilegiadas com um ou dois professores, com orientações, conversas, sugestões, debates. Onde e como seja possível. Sem currículo estrito ou avaliações sumativas. As escolas devem organizar-se para tal. E podem fazê-lo. Entretanto, o Governo deve dar um computador (um computador a sério e não o ferro velho que prolifera pelas escolas) e uma ligação de boa qualidade à internet a cada aluno português que os não tenha. Pode pedir-se, ou impor-se, às operadoras de telecomunicações, que paguem essas novas ligações à internet, pelo menos até ao fim deste ano civil.
Entretanto, declare-se o fim das aulas (que não, necessariamente, o fim do ano letivo), das provas de aferição, dos exames, crie-se um mecanismo de exceção para o acesso ao ensino superior ou adiem-se os exames do 12.º para outubro, permitindo que o ano letivo comece em setembro somente com alunos do 12.º ano, dando-se-lhes um tempo suplementar de preparação para os exames e permitindo aos professores preparar-se, em conjunto e analogicamente, para um ano letivo completo a começar só em novembro. E que as aulas do ensino superior comecem só em dezembro ou janeiro, até agosto.
Vivemos uma interrupção. Adaptemo-nos a isso sem transformar o anormal em novo normal, sem fetichismos que separem o nosso desejo da coisa verdadeiramente desejada: um país e um sistema de educação justos e decentes, intelectualmente honestos, que não transige da ideia de igualdade e que não deixa ninguém para trás.
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