A demissão de Relvas e o discurso de Passos:
as desventuras dos siameses
1. Na demissão de Relvas, o evidente disfarça o importante. É evidente que a degradação de algumas instituições de ensino superior, permitida por uma supervisão que funcionou para elas como o Banco de Portugal para o BPN, foi aproveitada por gente sem escrúpulos. Mas o importante, politicamente falando, era saber por que foi agora, e só agora, imolado Relvas. Por que razão, durante dois meses, as conclusões ficaram congeladas na gaveta de Crato. Por que razão Crato apunhalou Relvas, permitindo-se emitir opinião sobre a validade da licenciatura do, ainda, seu par de Governo, quando o juízo foi por ele próprio requerido ao tribunal. Mereça-nos Relvas a crítica que nos merecer, há normas mínimas de conduta, de que nenhum ministro está dispensado. Não só vi Crato cilindrá-las, como o vejo incensado por fazer o que era sua estrita obrigação e não podia deixar de fazer, dada a mediatização do escândalo.
Poucos se lembrarão do que disse Mariano Gago, aquando da eclosão da trapalhada com a licenciatura de Sócrates. Mas eu recordo: que a Universidade Independente havia sido auditada todos os anos, excepção feita ao ano-lectivo de 1999/2000, e que só em 2006 se tinha detectado um problema sério (referia-se à falta de pagamento de salários); que, à data dos factos (mais que anómalos), a inspecção tinha concluído, note-se bem, que era boa a qualidade pedagógica e científica da universidade e que era bom o seu funcionamento administrativo.
Desde Junho de 1999 que o processo de Bolonha constitui a base da reestruturação do ensino superior. Qualidade e harmonização eram as palavras-chave. Mas o binómio quedou-se pelo segundo monómio. Tudo se foi “harmonizando” a favor do negócio e do descomprometimento do Estado na formação superior dos cidadãos. A “eficiência económica”, seja lá o que isso for, tornou-se a estrela que nos conduziria ao “presépio”. Fixados nela, Sócrates e Gago deram ao Massachusetts Institute of Technology (MIT) 65 milhões de euros, no mesmo ano em que aplicaram o primeiro corte ao financiamento do ensino superior (16%). Seguindo-a, Relvas viu-se “equivalido”. É Bolonha, estúpidos! Esqueçam a prova escrita do regulamento da Lusófona. E a “inspecção” é tão-só o bibelot no púlpito da partitura.
2. Dizer que a Europa e o euro morreram em Chipre é especular. Mas afirmar que os cipriotas, comparados connosco, conseguiram o dobro do tempo para pagar o seu empréstimo e um juro bem mais favorável, é um facto. Vejamos os números. Chipre: 10.000 milhões a 22 anos e a 2,5%. Portugal: 78.000 milhões a 11 anos de maturidade média e 3,6% de taxa média. Imaginar o Governo português a lutar por condições idênticas é especular. Afirmar que o Governo português não percepciona a diferença entre a realidade e a ficção é um facto, que se retira do pouco que sobrou de Passos, no último domingo: pose e voz.
Podia ter reconhecido que, ao decidir medidas de austeridade bem mais penalizadoras que aquelas que foram acordadas com a troika, em Maio de 2011, precipitou a queda da economia, a subida brutal do desemprego e a chegada da recessão? Podia. Mas preferiu anunciar mais austeridade.
Podia ter reconhecido que foi um erro dividir os portugueses entre privados e públicos, velhos e novos, empreendedores e piegas? Podia. Mas preferiu anunciar vingança, a novas catanadas de despedimentos e cortes, precipitando o sucesso da desgraça final.
Podia ter reconhecido que, em vez de carregar de impostos e confiscos os que alimentam o Estado, deveria ter reduzido as rendas dos que se alimentam do Estado, aliás, como acordado com os credores? Podia. Mas preferiu continuar a desconhecer a raiz do problema.
Podia ter reconhecido que foi um erro hostilizar a oposição e os parceiros sociais, destruindo o consenso político e social de 2011? Podia. Mas, inspirado em Salazar, preferiu ficar orgulhosamente só.
Podia ter reconhecido que a sua política europeia, de colagem acrítica aos interesses do Norte e da Alemanha, em detrimento de Portugal, do Sul e da periferia, foi deplorável? Podia. Mas preferiu ir a Dublin, de dedo apontado ao Tribunal Constitucional, como sacristão de Schauble, assistir à suprema missa dos interesses dos mercados financeiros, à espera das migalhas que tombem do festim dos juros das dívidas soberanas.
Podia ter reconhecido o rotundo falhanço da sua estratégia económica e financeira e aproveitado o momento para remodelar ministros e políticas? Podia. Mas preferiu contratar um grotesco vendedor de pipocas (iniciativa do defunto Relvas, via “youtube”) e dois duros “técnicos especialistas” (golpe d’asa do seu pequeno Moedas) para acompanharem a execução do memorando, um de 21, outro de 22 anos, ambos com a relevante experiência de um estágio de três meses, não remunerado.
Santana Castilho
Jornal Público, 10/04/2013