Crato, o prepotente de falas mansas
No congresso do PSD, Passos Coelho afastou-se do partido e falou ao país. Mas não disse, sobre o futuro, coisa alguma que valesse o sacrifício de seguir aquele enorme bocejo. Cá fora houve sinais bem mais eloquentes sobre o que está para vir. Um “pitbull”, vestido com uma farda da polícia, zurziu uma repórter perigosamente armada com uma máquina fotográfica. O Governo, qual comité de censores, proibiu os responsáveis das empresas de transportes de informarem o público sobre os efeitos da última greve geral, espezinhando o direito de sermos esclarecidos pelo Estado sobre um aspecto relevante da vida colectiva e tornando ainda mais difícil, para todos os que não têm carro, a ida para o trabalho e o regresso a casa. E o ministro da Educação mostrou-se, uma vez mais, um prepotente de falas mansas. Duro o qualificativo? Apropriado para quem obriga crianças com necessidades educativas especiais a sujeitarem-se a exames nacionais, em circunstâncias que não respeitam o seu perfil de funcionalidade. Com o cinismo cauteloso de as retirar depois do tratamento estatístico dos resultados. De prepotência se tratou quando, em início de mandato, revogou os prémios de mérito dos alunos, sem aviso prévio e atempado, quando eles já tinham cumprido a sua parte. De prepotência voltou a tratar-se quando, dias antes das inscrições nos exames do 12º ano, as regras foram unilateralmente mudadas, ferindo de morte a confiança que qualquer estudante devia ter no Estado. E de novo voltámos à prepotência quando, por mais acertada que fosse a mudança, ela ocorreu a mais de meio do ano-lectivo (condições de acesso ao ensino superior por parte de alunos do ensino recorrente).
É esta a liberdade que Passos Coelho invocou repetidas vezes no congresso do PSD?
Passos Coelho, que me tenha dado conta, não fez qualquer alusão específica à Educação. Em tempo de balanço e prestação de contas, como lhe chamou, é significativo. Nem sequer, quando se regozijou com o cumprimento do memorando celebrado com a “troika”, julgou necessário reconhecer que, em matéria de Educação, quase tudo está por fazer. Recordemos, em síntese, as medidas a que a “troika” nos obrigava e vejamos o que foi cumprido:
- Melhorar a qualidade do ensino profissional, através de um plano de acção a desenvolver. Não há plano algum e nada foi feito. Continuamos, salvo raras excepções, com um ensino profissional de papel e lápis, que tudo aceita para manter na escola quem, de outro modo, a abandonaria. Uma vergonha, muito cara, para quem apregoa resultados, exigência e rigor.
- Melhorar a eficiência do sistema. A inimaginável burocracia com que Maria de Lurdes Rodrigues vergou os professores está incólume. Continua a chusma de reuniões caricatas, que para nada servem. Persistem siglas, planos e projectos estéreis. Agruparam escolas e agora agrupam agrupamentos. Cortaram cabeças pensantes e enxertaram no seu lugar regulamentos castrantes. Os resistentes são raros. Esta cultura instalou-se. Os professores “funcionam” cada vez mais e ensinam cada vez menos. Tornaram apáticos os professores, intranquilos os alunos e resignados todos, pais também. Balcanizaram, espalharam a descrença e o desânimo. Este “sistema” não é, certamente, o sistema cuja eficiência a “troika” queria que fosse melhorada.
- Diminuir o abandono escolar. É cedo para vermos, objectivamente, como este indicador se comportou sob tutela de novos senhores. Mas não é difícil prever que vai piorar, num contexto de tremenda crise de recursos das famílias, de fome nas escolas e de prolongamento insensato da duração da escolaridade obrigatória. Outra meta que não será cumprida.
- Consagração da autonomia das escolas. Uma falácia recorrente. Enxertos sucessivos na má qualidade dos normativos principais, que mudam aqui e ali para que tudo fique na mesma. Novo? O caciquismo local, mais atrofiante que o central e que a ele se soma. Novo? A barbaridade dos agrupamentos, que varreram de vez o conceito de Escola. Novo? Liberdade aos directores (que não à Escola) para escolherem a duração dos tempos lectivos.
- Reforçar o papel da Inspecção-Geral da Educação. Não há. É só. Há uma inspecção de processos administrativos. Há uma medíocre máquina punitiva que, mesmo assim, engonha quando os caciques entram em cena. Sei do que falo e tenho documentos. O meu endereço vai ao fundo da página, Senhor Inspector-Geral.
- Economizar 195 milhões de euros em 2012 e 175 em 2013, racionalizando a rede de escolas, diminuindo a contratação de recursos humanos e reduzindo as transferências para as escolas privadas. Finalmente, objectivo cumprido, por mais do que o pedido, com antecipação de prazos e uma só pequeníssima excepção: as transferências para o privado cresceram em vez de diminuírem.
In "Público" de 28.3.12