O "gadgetismo"
A dúvida assalta-me a cada nova acometida: a sucessão das etapas desagregadoras da educação nacional foi planeada à distância? Olho para os protagonistas e logo rejeito. Mesmo para urdir estrategicamente a maldade mais odiosa é necessária uma inteligência que não possuem. Actuam à bolina e move-os um só desígnio: embaratecer o custo do trabalho honesto de muitos para enriquecer uns tantos, protegidos pela “burka” da legalidade podre que corrói o país. Anima-os uma cultura: o “gadgetismo” bacoco. Suporta-os o sonambulismo cívico da nação.
Aos Magalhães, aos quadros interactivos e a toda a corte de “gadgets” electrónicos, enganosos salvadores da ignorância que floresce, acrescentam-se agora os “gadgets” pedagógicos e organizacionais do momento: a “learning street” e os megas – agrupamentos de escolas.
Sob os auspícios da Parque Oculta, dizem-me que José Trocado executa o comando de José Trocas-Te: um mega agrupamento de escolas por concelho. Exagero ou não, tanto faz. Facto é que as direcções regionais iniciaram a fusão dos agrupamentos existentes. Trata-se de arrebanhar crianças de tenra idade, retirá-las do seio familiar contra a vontade dos progenitores e abandoná-las numa comunidade de milhares de alunos com idades que vão até aos 18 anos (apontam os 3.000 como limite, mas com a credibilidade que lhe conhecemos, só eles sabem onde a loucura os pode deter). Perfilam-se surreais ligações administrativas e pedagógicas de escolas separadas por dezenas de quilómetros, com projectos educativos tão idênticos como a velocidade e o toucinho. Adivinham-se os inerentes megas agrupamentos de docentes e a mega mobilidade dos ditos, com o primeiro tempo da tarde a quilómetros do local onde leccionaram de manhã. Tudo caucionado pela crise económica, pela grilheta limitativa do calendário das presidenciais e pelo jogo dos pequenos interesses dum bloco central envergonhado. Com esta desumana fórmula de gerir escolas, a decantada qualidade do ensino deteriorar-se-á ainda mais. Desaparecerá a gestão de proximidade que o acto educativo não pode dispensar. O que restava da pedagogia cederá passo ao centralismo administrativo que, sendo já mau, agora fica gigantescamente deplorável. O caciquismo vai refinar-se, a burocracia expandir-se e a indisciplina aumentar. Não esperem que se aprenda mais ou que o abandono e o insucesso escolar diminuam. Só florescerá a aldrabice das estatísticas e a crista dos galos que permanecerem nos poleiros.
Toda a lógica gestionária, entronada há apenas um ano como a (e sublinho o artigo definido) solução, já vai de arrasto, directores às urtigas, órgãos dos agrupamentos às malvas. Não é exequível qualquer projecto educativo com tais loucos ao leme. Não são criminosos no sentido penal do termo. Mas são hediondos criminosos pedagógicos. Não só escaqueiraram o que encontraram como deixam armadilhado o caminho dos que se seguirem, que outra alternativa não terão senão voltar a virar tudo do avesso, salvo se forem tão insanos como eles. O sistema educativo não aguenta tamanha instabilidade. Tudo o que possa ser sério e válido é visceralmente incompatível com este tumulto. Para fazer o que a nação reclama que seja feito, quem se seguir tem que se alicerçar num diálogo social e num pacto político que gere estabilidade à volta do que é estruturante. Doutra forma o sistema soçobra. Percebo bem que os portugueses se preocupem com a bancarrota. Não entendo que não reajam à “educaçãorrota”. Depois de lhes sacrificarem os filhos, ainda não se dispõem a defender os netos?
O ano-lectivo vai terminar de forma grotesca. De fanfarronada em fanfarronada, os sindicatos foram ao tapete: cederam na aberração da avaliação do desempenho; aguardam com a paciência dos desistentes um estatuto de carreira por promulgar que, em boa verdade, só muda as moscas; assistiram ao sacrifício dos contratados e ao adiamento de tudo o que libertasse os professores da escravidão em que caíram. Pactuaram quando tinham que ser firmes. Persistiram no erro quando puderam reconhecê-lo. E não contentes, espadeiraram contra os que estavam do seu lado, cegos pela ganância de não partilharem o protagonismo das negociações eternas. Cabe aos professores rejeitarem vigorosamente o papel de simples sujeitos – mercadoria que o “gadgetismo” irresponsável lhes reserva, impondo-lhes, como se desejo seu fosse, toda a sorte de porcaria perniciosa. Mas não cabe só aos professores. É tempo do novo responsável do PSD dizer ao que vem. Dizer claramente se sustenta a dissimulada mas escandalosa privatização do Ministério da Educação, que o polvo da Parque Escolar vai sorvendo; dizer, com urgência, se acompanha ou não a subalternização da sala de aula e a substituição do ensino pelo entretenimento atrevido e ignorante do eduquês pós – moderno de Teresa Heitor; dizer, sem dar espaço às habituais tergiversões do PSD, se, uma vez no Governo, porá fim à terraplanagem selvagem da identidade e da cultura das escolas portuguesas; mais que dizer, mostrar, numa palavra, ele que tanto se detém nos labirintos da economia e da globalização, que interiorizou as razões pelas quais as multinacionais do ocidente procuram os alunos da China, da Coreia do Sul e da Índia.
Público, 23/06/2010
Aos Magalhães, aos quadros interactivos e a toda a corte de “gadgets” electrónicos, enganosos salvadores da ignorância que floresce, acrescentam-se agora os “gadgets” pedagógicos e organizacionais do momento: a “learning street” e os megas – agrupamentos de escolas.
Sob os auspícios da Parque Oculta, dizem-me que José Trocado executa o comando de José Trocas-Te: um mega agrupamento de escolas por concelho. Exagero ou não, tanto faz. Facto é que as direcções regionais iniciaram a fusão dos agrupamentos existentes. Trata-se de arrebanhar crianças de tenra idade, retirá-las do seio familiar contra a vontade dos progenitores e abandoná-las numa comunidade de milhares de alunos com idades que vão até aos 18 anos (apontam os 3.000 como limite, mas com a credibilidade que lhe conhecemos, só eles sabem onde a loucura os pode deter). Perfilam-se surreais ligações administrativas e pedagógicas de escolas separadas por dezenas de quilómetros, com projectos educativos tão idênticos como a velocidade e o toucinho. Adivinham-se os inerentes megas agrupamentos de docentes e a mega mobilidade dos ditos, com o primeiro tempo da tarde a quilómetros do local onde leccionaram de manhã. Tudo caucionado pela crise económica, pela grilheta limitativa do calendário das presidenciais e pelo jogo dos pequenos interesses dum bloco central envergonhado. Com esta desumana fórmula de gerir escolas, a decantada qualidade do ensino deteriorar-se-á ainda mais. Desaparecerá a gestão de proximidade que o acto educativo não pode dispensar. O que restava da pedagogia cederá passo ao centralismo administrativo que, sendo já mau, agora fica gigantescamente deplorável. O caciquismo vai refinar-se, a burocracia expandir-se e a indisciplina aumentar. Não esperem que se aprenda mais ou que o abandono e o insucesso escolar diminuam. Só florescerá a aldrabice das estatísticas e a crista dos galos que permanecerem nos poleiros.
Toda a lógica gestionária, entronada há apenas um ano como a (e sublinho o artigo definido) solução, já vai de arrasto, directores às urtigas, órgãos dos agrupamentos às malvas. Não é exequível qualquer projecto educativo com tais loucos ao leme. Não são criminosos no sentido penal do termo. Mas são hediondos criminosos pedagógicos. Não só escaqueiraram o que encontraram como deixam armadilhado o caminho dos que se seguirem, que outra alternativa não terão senão voltar a virar tudo do avesso, salvo se forem tão insanos como eles. O sistema educativo não aguenta tamanha instabilidade. Tudo o que possa ser sério e válido é visceralmente incompatível com este tumulto. Para fazer o que a nação reclama que seja feito, quem se seguir tem que se alicerçar num diálogo social e num pacto político que gere estabilidade à volta do que é estruturante. Doutra forma o sistema soçobra. Percebo bem que os portugueses se preocupem com a bancarrota. Não entendo que não reajam à “educaçãorrota”. Depois de lhes sacrificarem os filhos, ainda não se dispõem a defender os netos?
O ano-lectivo vai terminar de forma grotesca. De fanfarronada em fanfarronada, os sindicatos foram ao tapete: cederam na aberração da avaliação do desempenho; aguardam com a paciência dos desistentes um estatuto de carreira por promulgar que, em boa verdade, só muda as moscas; assistiram ao sacrifício dos contratados e ao adiamento de tudo o que libertasse os professores da escravidão em que caíram. Pactuaram quando tinham que ser firmes. Persistiram no erro quando puderam reconhecê-lo. E não contentes, espadeiraram contra os que estavam do seu lado, cegos pela ganância de não partilharem o protagonismo das negociações eternas. Cabe aos professores rejeitarem vigorosamente o papel de simples sujeitos – mercadoria que o “gadgetismo” irresponsável lhes reserva, impondo-lhes, como se desejo seu fosse, toda a sorte de porcaria perniciosa. Mas não cabe só aos professores. É tempo do novo responsável do PSD dizer ao que vem. Dizer claramente se sustenta a dissimulada mas escandalosa privatização do Ministério da Educação, que o polvo da Parque Escolar vai sorvendo; dizer, com urgência, se acompanha ou não a subalternização da sala de aula e a substituição do ensino pelo entretenimento atrevido e ignorante do eduquês pós – moderno de Teresa Heitor; dizer, sem dar espaço às habituais tergiversões do PSD, se, uma vez no Governo, porá fim à terraplanagem selvagem da identidade e da cultura das escolas portuguesas; mais que dizer, mostrar, numa palavra, ele que tanto se detém nos labirintos da economia e da globalização, que interiorizou as razões pelas quais as multinacionais do ocidente procuram os alunos da China, da Coreia do Sul e da Índia.
Público, 23/06/2010