Todo o dinheiro que a austeridade da troika e deste Governo retirou ao funcionamento da economia, à saúde, à educação e ao bolso dos portugueses, 28.000 milhões de euros, foi, quase na íntegra, para pagar o serviço da dívida, numa evidência gritante de que a austeridade nada resolveu do problema que queria resolver.
Dados do Boletim Estatístico do Banco de Portugal mostram que, entre 2010 e 2014, a dívida conjunta, pública mais privada, cresceu 46,1 pontos percentuais por referência ao PIB, cifrando-se agora na assustadora expressão de 767.226 milhões de euros. A dependência de Portugal relativamente ao estrangeiro aumentou drasticamente pela mão da troika e de Passos, o mercador dos nossos anéis. Entre o que Portugal já vendeu ou vai vender a preços de saldo, recordo: Espírito Santo Saúde, HPP Saúde da CGD, Tranquilidade, Fidelidade, BPN, Banco Espírito Santo, agora Novo Banco, Cimpor, EDP, REN, ANA, CTT, TAP e PT.
Com este pano de fundo, o orçamento é marcado, mais uma vez, pelo aumento da carga fiscal. É socialmente injusto: limita de novo as prestações sociais e mantém a sobretaxa de IRS (dita extraordinária mas de facto perene) enquanto diminui o IRC, por forma a beneficiar apenas as grandes empresas. A solução encontrada (projectar para 2016 uma hipotética redução da sobretaxa, desde que a cobrança do IVA e do IRS cresçam acima de 6%), para além de ilegal (as disposições orçamentais têm efeito exclusivo para o ano a que respeitam), é um expediente reles com que se tenta manipular a opinião pública. O aliviar de sacrifícios (reformados e funcionários públicos) impõe que não se esqueça o óbvio: o mesmo Governo que fez ponto de honra da necessidade de cumprir os compromissos e as dívidas para com estrangeiros, desonrou os compromissos que tinha para com os portugueses, deixando de lhes pagar o que com eles havia contratado. E se agora corrige parcialmente a imoralidade da sua política (ainda assim com o rancor que transparece do que escreveu nos documentos que cito) é porque a tal foi obrigado pelo Tribunal Constitucional. O orçamento está aferrolhado para apoiar as pequenas e médias empresas, mas escancarado para engolir os prejuízos do BES. O orçamento é deliberadamente mentiroso: ao mesmo tempo que o motor da economia europeia, a Alemanha, corrige a previsão de crescimento para 2015 de 2,0% para 1,3%, o Governo tem a lata de construir as suas contas a partir do pressuposto de crescermos 1,5%.
Mas há lata maior. A “esclarificação” com que Crato nos brindou sobre o Orçamento do Estado para 2015 reconduziu-me ao Bocage boémio: o corte que aquela senhora deu, não foi ela, fui eu! É preciso topete para querer transformar 704,4 milhões de euros de corte orçamental na Educação (-11,3%) nos 200 milhões saídos da lógica anedótica do ministro. À brincadeira de Nuno Crato opõem-se 578 páginas de realidade: 278 de orçamento e 300 da proposta de lei que o aprova. Algumas pérolas aí escritas evidenciam a mistificação que envergonharia pessoas decentes. Mas não o Governo, muito menos Nuno Crato. Na página 172, quando explanam as políticas que o orçamento serve, os mistificadores voltam com a lengalenga de ser “a melhoria dos índices de qualificação da população factor determinante para o progresso, desenvolvimento e crescimento económico do país”. Eles, que reduziram os complementos educativos no ensino não-superior em 47,6 %. Eles, que cortaram 68,8% aos serviços de apoio ao ensino superior. Na mesma página, escrevem estar firmemente empenhados “em melhorar os níveis de educação e formação de adultos”. Eles, que cortaram 38,6% do financiamento ao sector. Na página seguinte apontam como objectivo estratégico “garantir o acesso à educação especial, adequando a intervenção educativa e a resposta terapêutica às necessidades dos alunos e das suas famílias”. Eles, que cortaram o financiamento deste sector, onde se incluem deficientes profundos, em 15,3%, removendo sistematicamente, serviço após serviço, as respostas especializadas antes existentes. Tragam estes mistificadores um só pai, uma só mãe destas crianças com necessidades educativas especiais, um só professor da área, a desmentir o que afirmo e a concordarem com o Governo. E o despudor atinge o clímax quando destacam como medidas justificativas do orçamento a “consolidação da implementação das metas curriculares”, esse expoente superior do refinado “eduquês” inferior. Para o leitor menos familiarizado com o tema, adianto que, apenas no que toca ao 1.º ciclo do ensino básico, e se nos ficarmos pelas duas áreas mais badaladas do currículo, Português e Matemática, estamos a falar de 177 objectivos desdobrados em 703 descritores. Qual cereja em cima da imbecilidade, deixo-vos duas dessas metas:
"- Reunir numa sílaba os primeiros fonemas de duas palavras (por exemplo 'cachorro irritado') cometendo poucos erros.
- Ler correctamente, por minuto, no mínimo 40 palavras de uma lista de palavras de um texto apresentadas quase aleatoriamente."
Sim, leram bem! Está lá quase aleatoriamente.
Público, 22/10/14