Santana Castilho - Público
A saga experimentalista de Nuno Crato continua a saltar de programa em programa com a leveza dos hipopótamos. Chegou a hora do Português para o ensino básico, agora em falsa discussão pública até ao próximo dia 17. Porquê falsa? Porque a apreciação das sugestões produzidas (só incautos perderão tempo a sugerir seja o que for neste contexto) cabe ao mesmo comité de crânios que concebeu o programa que definiu, só para os primeiros quatro anos, os hilariantes 105 objectivos e os kafkianos 308 descritores que guiam, qual lâmpada de Aladino, o respectivo ensino. Para afinar o diapasão da crítica, recordemos três das que passarão a ser as 1.000 metas, do 1.º ao 9.º ano, do cientismo cratiano:
— “Ler correctamente, por minuto, no mínimo 40 palavras de uma lista de palavras de um texto apresentadas quase aleatoriamente.” Se julgávamos que uma escolha era aleatória ou não era, ficámos a saber que há, ainda, o “quase aleatoriamente”.
— “Escrever quase sem erros uma lista de 60 palavras em situação de ditado.” Se não souberem como determinar o que é “quase sem erros”, não se detenham a inquirir o rigor matemático de Nuno Crato. Ele também não pode saber.
— “Ler pelo menos 45 de 60 pseudo-palavras (sequências de letras que não têm significado mas que poderiam ser palavras em português) monossilábicas, dissilábicas e trissilábicas (em 4 sessões de 15 pseudo-palavras cada).” Tivesse a escola assim treinado o aluno Cavaco Silva e o insigne Presidente nunca nos teria tratado por “cidadões”.
O ministro, que passa a vida a invocar a avaliação externa e independente, depois de submeter o escrutínio das críticas a juízes que actuarão em causa própria, decidiu que apenas serão “integrados os elementos susceptíveis de enriquecer e melhorar a proposta inicial” (site da Direcção-Geral de Educação). Excluiu, assim, convenientemente, a hipótese de os contributos apontarem para a manutenção pura e simples do programa actual. Atitude séria? Não. Mas coerente, porquanto a sua hipócrita independência está personificada no “externo” IAVE. Mais, ainda. Quando, em acto falhado, se lê no site citado que o programa “deverá ser homologado no final de Abril”, confessa-se, implicitamente, a ineficácia superveniente a uma discussão pública, que só pode ser de fachada.
Posto isto, formulo perguntas cuja resposta é não. Foi apresentada alguma avaliação fundamentada sobre a inadequação do programa que se quer substituir? Foram ouvidos os docentes que desde 2009 têm leccionado esse programa? Foi considerada a abundante produção científica (psicolinguística, didáctica e literacia) sobre o ensino das línguas maternas nos países com que nos comparamos em avaliações internacionais? As respostas circunscrevem-se a um rotundo não porque a génese da iniciativa radica no achismo. O arauto do cientismo de chinelo achou, em despacho, que era preciso agora enquadrar e dar coerência às suas notáveis metas, esquecendo que havia dito o contrário, quando as lançou e foi alertado para a circunstância dessas metas personificarem, além da patetice métrica, o desrespeito pelo programa vigente. E persiste na manipulação grosseira, chamando ajustamento entre programa e metas ao que é um evidente novo programa, servido por pressupostos bem diferentes, que abalroa de modo bruto tudo o que se fez desde 2009.
As práticas que o programa preconiza, cuja análise exaustiva não cabe neste curto espaço (cite-se, por todas, a substituição da compreensão oral pela memorização mecânica) sobressaem de uma molhada metodológica (a confusão entre conceitos, objectivos e ímpetos declarativos tornam a coisa simplesmente imprestável para qualquer orientação séria) e tipificam a vã glória de Nuno Crato: retroceder três décadas e sacralizar as piores práticas. Este programa impõe o que o Conselho Nacional de Educação diz estar errado. Este programa retira qualquer espaço de liberdade aos professores e impede a recuperação dos alunos em dificuldade, no dizer da Associação de Professores de Português. Este programa tem uma extensão irrealista face à natureza psicopedagógica das crianças a que se destina. Este programa é obsessivo em relação aos exames.
O homem que se referiu às ciências da educação como ocultas ficará, paradoxalmente, notabilizado por contaminar o sistema educativo com um cientismo econometrista baixo, que alastra perigosamente, aprisionando os docentes e reduzindo-os a um funcionalismo imposto pela burocratização normativa.
A política de Crato abandonou o conhecimento sobre o ser integral e fixou-se numa concepção utilitarista, dramaticamente redutora. Com este precedente, o caminho para a perversão interpretativa da missão da Escola e dos professores ficou aberto à preponderância grotesca das metas, com consequências lesivas no futuro de todos.
A Educação afunda-se com Nuno Crato a tocar no convés.
Público, 8/04/2015