Paulo Guinote
Gostava de começar por admitir sem problemas que não sou um adepto extremamente entusiasta da greve como forma de luta banal(izada) de acordo com agendas políticas que transcendam os interesses específicos dos trabalhadores envolvidos.
Assim como é bom declarar, para esclarecimento prévio de quem lê, que por razões de distribuição de serviço no início do ano lectivo não tenho turmas de 6.º ou 9.º anos pelo que a greve às avaliações não me envolve directamente nos próximos dias 7 a 14 de Junho.
No entanto, isso não me impede de declarar que essa é uma greve mais do que justificada, só pecando por tardia, contra a política de um Governo que tem desbaratado todo o seu crédito político, ao querer fazer incidir a solução para uma muito glosada crise orçamental quase em exclusivo nos cortes feitos nos rendimentos dos trabalhadores privados mas em especial dos públicos, assim como num conjunto de apoios sociais que entre nós nunca atingiram um nível que justifique o disparatado discurso sobre um “excesso de direitos” por parte de quem fecha os olhos a negócios lesivos para o interesse público em muitos milhares de milhões.
Na área específica da Educação, este primeiro-ministro e este ministro têm quebrado sucessivas promessas com base em argumentos que, se levados a sério, apenas demonstrariam o quanto estavam impreparados para o exercício das suas funções. E não me refiro a promessas feitas especificamente aos professores e em relação ao que o aparelho comunicacional que rodeia a clique governamental – e alguns grupos de interesses que andam na sua órbita em busca de favores – consideram “privilégios corporativos”. Refiro-me a uma política educativa global que não existe para além da adesão a modas importadas com escasso critério mas de acordo com uma agenda muito clara destinada a justificar a transferência de uma crescente parcela do orçamento do Ministério da Educação e Ciência (MEC) para nichos particulares de um impaciente mercado privado, mas subsidiodependente, na área da Educação.
Essa política global e integrada tem sido substituída por medidas avulsas quase sempre resultantes de imposições de um incompetente Ministério das Finanças e que se traduzem em objectivos de mais ou menos centenas de milhões de euros em cortes, cujos principais prejudicados a médio-longo prazo são os alunos e o próprio país. Não significa isso que os professores não sejam os principais visados, no plano imediato, pela política educativa dos cortes, mas sim que essas medidas, ao atingirem o principal recurso educativo do sistema (o factor humano que não é substituível por quadros interactivos ou portáteis a esmo), colocam todo o seu equilíbrio em causa.
É verdade que os professores vão fazer greve porque estão a ser, de novo, atingidos nas suas condições de trabalho, de remuneração e de expectativa de carreira.
Mas não se pode ignorar que algo mais está em causa e que é falacioso o argumento de esta greve não ser legítima por colocar em causa os interesses de terceiros, neste caso dos alunos. É falso e digo-o como alguém que quase sempre se achou pouco sensibilizado por este tipo de medidas de “luta”. Até porque toda a greve, para ser minimamente eficaz, deve colocar em causa o remanso das rotinas estabelecidas e a comodidade dos interesses instalados. Mas neste caso, a greve dos professores apresenta-se como um dever cívico e mesmo um imperativo ético contra o desnorte de uma não política educativa que está a colocar seriamente em risco os ganhos alcançados nas últimas décadas, por muitos discursos derrotistas ou catastrofistas que se elaborem.
E se o que está em causa é um atentado aos legítimos direitos das “comunidades educativas” porque não se consultam os seus representantes no terreno?
É meu entendimento que, em tempo devido, nas escolas, os presidentes dos Conselhos Gerais deveriam ter tomado a iniciativa de os convocar para ouvir as opiniões nele presentes acerca das razões desta greve e se, por acaso, não estariam as comunidades educativas em causa solidárias com a agenda reivindicativa dos professores.
Assim como é minha convicção que é essencial que os directores das escolas e agrupamentos definam, de forma clara, se ainda se consideram professores ou directores de carreira e se o seu papel é o de mera correia de transmissão hierárquica de obediências para com a tutela ou de líderes das comunidades escolares que servem as ditas comunidades educativas que os escolheram.
Se ainda se consideram professores e consideram voltar à carreira após o exercício das suas funções não podem ser estranhos aos anseios da classe a que pertencem. Se já se consideram outra coisa, então percebe-se que a sua “luta” passe pelo regateio dos suplementos remuneratórios de pouco mais de um milhar de ex-professores.
Já escrevi em outros espaços e ocasiões que esta greve deveria ter sido articulada, desde o início, de uma forma diferente que envolvesse todos os directamente interessados em preservar uma Educação Pública (na sua acepção mais ampla) dos ataques que lhe têm sido sucessivamente dirigidos, em especial nos tempos mais recentes com a legitimação cobarde de ser um resultado das imposições da troika.
Os Conselhos Gerais deveriam ter sido consultados, os directores deveriam tomar uma posição sobre o assunto, para além do seu encerramento micro-corporativo, e deveria ser colocada em causa, nem tanto a realização de reuniões, mas a divulgação das avaliações de todos os anos de escolaridade.
Isso causaria perturbação aos alunos, poderia levar a demissões compulsivas de directores, a um novo nível de conflitualidade nas escolas que assusta demasiada gente instalada ou com ambições na manutenção (ou futuro exercício) dos poderes políticos? Sim certamente e esse deveria ser o seu objectivo, sem pudores ou rubores.
Mas, mesmo na falta do ideal, a greve anunciada continua a ser um acto de civismo contra um poder político descontrolado, abusivo e que só invoca o primado da lei em interesse próprio. E torna-se um imperativo ético que alunos, famílias e demais interessados na coisa pública só ganhariam em sentir como seu e feito também em sua defesa.
Público, 03/06/2013
(Negrito nosso)