Paulo Guinote Professor e autor do livro “A Grande Marcha dos Professores”
Nunca se tinha assistido a nada assim. A 8 de março de 2008, cerca de 100 mil professores saíram à rua naquela que foi a maior manifestação de uma classe profissional alguma vez realizada em Portugal. Queriam contestar a ministra Maria de Lurdes Rodrigues, que elegeram como inimigo nº 1, e acabar com o modelo de avaliação de desempenho assente na divisão da carreira em duas categorias, que acabou por não avançar.
Oito anos depois, Paulo Guinote, professor de Português do 2º ciclo e autor do popular blogue “Educação do Meu Umbigo”, entretanto extinto, recorda o protesto sem precedentes no livro “A Grande Marcha dos Professores”, que será lançado esta semana. Hoje, garante, os docentes estão ainda mais desanimados do que na altura.
O que mais recorda desse dia?
Lembro-me de uma altura em que estava a meio da Avenida da Liberdade, olhei à minha volta e vi-me completamente rodeado de gente. Para quem, como eu, nunca tinha estado numa manifestação, era uma sensação bastante estranha.
Que marcas deixou nas escolas?
Vendo com esta distância, acho que deixou marcas de desânimo e alguma tristeza. Houve demasiada esperança para tudo o que não foi conseguido. Nenhuma reivindicação essencial foi satisfeita.
Mas a distinção entre professores e professores titulares não foi para a frente e o próprio modelo de avaliação foi muito simplificado.
Aquela avaliação não era possível de pôr em prática porque acarretava um tal peso burocrático e tanto tempo para ser concretizada que quase paralisaria o funcionamento das escolas. Não tínhamos e continuamos a não ter gente suficiente nas escolas com o reconhecimento pelos pares e a formação específica para proceder a uma avaliação rigorosa. Ainda hoje, não passa de uma ficção, em que as pessoas que avaliam têm a mesma qualificação daquelas que estão a ser avaliadas e que não permite detetar as más práticas docentes.
Não é possível distinguir os bons dos maus professores?
Com o modelo em vigor, os professores, e mesmo assim não os de todos os escalões, só têm duas aulas assistidas. Ora, um professor dá perto de 700 aulas por ano. Sendo as aulas assistidas marcadas previamente, mesmo um mau professor consegue dar duas aulas razoáveis. Poderá fazer imensamente mal em todas as outras, que não passará pelo crivo desta avaliação. Já na altura o modelo tinha esse erro. Uma avaliação eficaz baseia-se num acompanhamento de proximidade e de continuidade, que não existe.
Mas se os professores não reconhecem aos seus pares a qualificação e formação necessárias para o fazer, quem assumiria esse papel?
Tem de ser construído a médio prazo. Não é possível pôr um modelo de avaliação de qualidade a funcionar em dois ou três anos. Tem de existir um período de formação e de experimentação nas escolas. Todos nós sabemos quem são os maus profissionais. O que tem de haver é autoridade de alguém, reconhecida pelo grupo, e coragem dessa pessoa em confrontar quem sabemos que tem práticas menos corretas para dizer “ou alteras a tua prática, ou há consequências”. E tem de haver mecanismos de controlo sobre a própria relação entre avaliador e avaliado. Nas escolas, as pessoas prestam-se muito às pequenas vinganças e às pequenas amizades que depois se podem refletir na nota.
Isso pode acontecer em qualquer empresa e em qualquer profissão.
Entre os docentes há uma cultura muito enraizada de igualdade. Consideramos que temos todos a mesma competência para desempenhar a profissão, daí que haja dificuldade em aceitar que a avaliação seja feita pelos pares. Tem de haver um grupo de professores avaliadores, que devem continuar a dar aulas, mas que devem ter um horário para se formarem e testar o modelo. É um investimento a médio, longo prazo que nenhum Governo, com um calendário de três ou quatro anos, aceita. O sistema está contaminado pelo facilitismo e pelo amiguismo. E há outra questão: com a carreira congelada em oito dos últimos dez anos, mesmo uma má avaliação não tem consequências. Por isso, o que sentimos é que é uma inutilidade. Estimula-se a apatia e fomenta-se o desânimo.
Como saiu a imagem dos professores depois desses protestos?
Há uma enorme diferença entre a imagem pública que se retrata nos inquéritos de opinião sobre as várias profissões e em que os professores têm sempre taxas de aceitação muito altas e a opinião publicada, que foi muito negativa. Muitos opinion makers estavam contra as posições dos professores e achavam que eles não queriam ser avaliados e eram todos preguiçosos. Mas acho que não aconteceu o mesmo na opinião pública no geral.
Não sente que nos últimos anos houve uma degradação da imagem pública dos professores que se reflete na sua autoridade?
Isso já vem pelo menos desde os anos 90. Há um discurso enraizado de desculpabilização dos maus comportamentos e um discurso político de que o chumbo é um mal para a sociedade. Dizer que os exames não servem para nada transmite aos alunos a perceção de que podem fazer qualquer coisa porque têm direito ao sucesso. É extremamente nocivo porque desmobiliza os alunos bons e pode fazer da escolaridade até ao 9º ano um imenso recreio. E desautoriza o professor na sala de aula porque põe o aluno a dizer: “Não me pode tocar, não me pode chumbar, o que é que me pode fazer?”
Isso tem vindo a agravar-se?
Sendo muito impopular entre os meus colegas o que vou dizer, acredito que a introdução de provas de final de ciclo, nomeadamente do 6º ano — as do 4º poderão ser mais polémicas — trouxe às escolas um sinal de alarme. Aceitar apenas provas de aferição a meio do percurso e só monitorizar no final do ciclo funciona em países com uma consolidação da escolaridade muito anterior à nossa, nomeadamente os escandinavos, que não têm as nossas desigualdades socioeconómicas. O que acontece é que as regras dos bons colégios privados são, em muitos casos, o oposto do que temos de fazer nas escolas públicas, em questões disciplinares e de respeito pelo professor.
Dar aulas deixou de ser aliciante?
Claramente, quer do ponto de vista material, porque houve uma proletarização evidente, quer do prestígio social, que foi diminuído pelo desaparecimento de horizontes de carreira.
Que retrato traça da classe?
É uma classe envelhecida, desiludida, sem perspetivas de progressão e que está cansada de lhe serem imputadas as responsabilidades por todos os erros cometidos a nível político. É dramático, mas nos anos 70 havia melhores condições em muitos aspetos do que agora.
Em que sentido?
Lamento muito que a minha filha, que está no 7º ano, tenha turmas com mais alunos do que eu tive, há 35 anos. Os políticos acham que tudo se resolve na base dos rácios e não percebem que ter uma turma de 30 alunos é um esforço para um professor com 50 ou 60 anos que poucas pessoas são capazes de calcular. E há professores que têm dez turmas. Ainda assim, conseguimos progressos nos exames internacionais.
Que nota daria a este ministro?
Ainda não tem elementos de avaliação suficientes para eu dar uma nota. Naquilo que tem impacto orçamental, ainda não anunciou nada de relevante.
E aos sindicatos?
Têm um papel essencial, mas dificilmente me sinto representado por alguém que não exerce a minha profissão há décadas. Gostava de ver à sua frente pessoas que dessem pelo menos um ano de aulas em cada década. Não sendo assim, são profissionais do sindicalismo. Não são professores.
Oito anos depois, Paulo Guinote, professor de Português do 2º ciclo e autor do popular blogue “Educação do Meu Umbigo”, entretanto extinto, recorda o protesto sem precedentes no livro “A Grande Marcha dos Professores”, que será lançado esta semana. Hoje, garante, os docentes estão ainda mais desanimados do que na altura.
O que mais recorda desse dia?
Lembro-me de uma altura em que estava a meio da Avenida da Liberdade, olhei à minha volta e vi-me completamente rodeado de gente. Para quem, como eu, nunca tinha estado numa manifestação, era uma sensação bastante estranha.
Que marcas deixou nas escolas?
Vendo com esta distância, acho que deixou marcas de desânimo e alguma tristeza. Houve demasiada esperança para tudo o que não foi conseguido. Nenhuma reivindicação essencial foi satisfeita.
Mas a distinção entre professores e professores titulares não foi para a frente e o próprio modelo de avaliação foi muito simplificado.
Aquela avaliação não era possível de pôr em prática porque acarretava um tal peso burocrático e tanto tempo para ser concretizada que quase paralisaria o funcionamento das escolas. Não tínhamos e continuamos a não ter gente suficiente nas escolas com o reconhecimento pelos pares e a formação específica para proceder a uma avaliação rigorosa. Ainda hoje, não passa de uma ficção, em que as pessoas que avaliam têm a mesma qualificação daquelas que estão a ser avaliadas e que não permite detetar as más práticas docentes.
Não é possível distinguir os bons dos maus professores?
Com o modelo em vigor, os professores, e mesmo assim não os de todos os escalões, só têm duas aulas assistidas. Ora, um professor dá perto de 700 aulas por ano. Sendo as aulas assistidas marcadas previamente, mesmo um mau professor consegue dar duas aulas razoáveis. Poderá fazer imensamente mal em todas as outras, que não passará pelo crivo desta avaliação. Já na altura o modelo tinha esse erro. Uma avaliação eficaz baseia-se num acompanhamento de proximidade e de continuidade, que não existe.
Mas se os professores não reconhecem aos seus pares a qualificação e formação necessárias para o fazer, quem assumiria esse papel?
Tem de ser construído a médio prazo. Não é possível pôr um modelo de avaliação de qualidade a funcionar em dois ou três anos. Tem de existir um período de formação e de experimentação nas escolas. Todos nós sabemos quem são os maus profissionais. O que tem de haver é autoridade de alguém, reconhecida pelo grupo, e coragem dessa pessoa em confrontar quem sabemos que tem práticas menos corretas para dizer “ou alteras a tua prática, ou há consequências”. E tem de haver mecanismos de controlo sobre a própria relação entre avaliador e avaliado. Nas escolas, as pessoas prestam-se muito às pequenas vinganças e às pequenas amizades que depois se podem refletir na nota.
Isso pode acontecer em qualquer empresa e em qualquer profissão.
Entre os docentes há uma cultura muito enraizada de igualdade. Consideramos que temos todos a mesma competência para desempenhar a profissão, daí que haja dificuldade em aceitar que a avaliação seja feita pelos pares. Tem de haver um grupo de professores avaliadores, que devem continuar a dar aulas, mas que devem ter um horário para se formarem e testar o modelo. É um investimento a médio, longo prazo que nenhum Governo, com um calendário de três ou quatro anos, aceita. O sistema está contaminado pelo facilitismo e pelo amiguismo. E há outra questão: com a carreira congelada em oito dos últimos dez anos, mesmo uma má avaliação não tem consequências. Por isso, o que sentimos é que é uma inutilidade. Estimula-se a apatia e fomenta-se o desânimo.
Como saiu a imagem dos professores depois desses protestos?
Há uma enorme diferença entre a imagem pública que se retrata nos inquéritos de opinião sobre as várias profissões e em que os professores têm sempre taxas de aceitação muito altas e a opinião publicada, que foi muito negativa. Muitos opinion makers estavam contra as posições dos professores e achavam que eles não queriam ser avaliados e eram todos preguiçosos. Mas acho que não aconteceu o mesmo na opinião pública no geral.
Não sente que nos últimos anos houve uma degradação da imagem pública dos professores que se reflete na sua autoridade?
Isso já vem pelo menos desde os anos 90. Há um discurso enraizado de desculpabilização dos maus comportamentos e um discurso político de que o chumbo é um mal para a sociedade. Dizer que os exames não servem para nada transmite aos alunos a perceção de que podem fazer qualquer coisa porque têm direito ao sucesso. É extremamente nocivo porque desmobiliza os alunos bons e pode fazer da escolaridade até ao 9º ano um imenso recreio. E desautoriza o professor na sala de aula porque põe o aluno a dizer: “Não me pode tocar, não me pode chumbar, o que é que me pode fazer?”
Isso tem vindo a agravar-se?
Sendo muito impopular entre os meus colegas o que vou dizer, acredito que a introdução de provas de final de ciclo, nomeadamente do 6º ano — as do 4º poderão ser mais polémicas — trouxe às escolas um sinal de alarme. Aceitar apenas provas de aferição a meio do percurso e só monitorizar no final do ciclo funciona em países com uma consolidação da escolaridade muito anterior à nossa, nomeadamente os escandinavos, que não têm as nossas desigualdades socioeconómicas. O que acontece é que as regras dos bons colégios privados são, em muitos casos, o oposto do que temos de fazer nas escolas públicas, em questões disciplinares e de respeito pelo professor.
Dar aulas deixou de ser aliciante?
Claramente, quer do ponto de vista material, porque houve uma proletarização evidente, quer do prestígio social, que foi diminuído pelo desaparecimento de horizontes de carreira.
Que retrato traça da classe?
É uma classe envelhecida, desiludida, sem perspetivas de progressão e que está cansada de lhe serem imputadas as responsabilidades por todos os erros cometidos a nível político. É dramático, mas nos anos 70 havia melhores condições em muitos aspetos do que agora.
Em que sentido?
Lamento muito que a minha filha, que está no 7º ano, tenha turmas com mais alunos do que eu tive, há 35 anos. Os políticos acham que tudo se resolve na base dos rácios e não percebem que ter uma turma de 30 alunos é um esforço para um professor com 50 ou 60 anos que poucas pessoas são capazes de calcular. E há professores que têm dez turmas. Ainda assim, conseguimos progressos nos exames internacionais.
Que nota daria a este ministro?
Ainda não tem elementos de avaliação suficientes para eu dar uma nota. Naquilo que tem impacto orçamental, ainda não anunciou nada de relevante.
E aos sindicatos?
Têm um papel essencial, mas dificilmente me sinto representado por alguém que não exerce a minha profissão há décadas. Gostava de ver à sua frente pessoas que dessem pelo menos um ano de aulas em cada década. Não sendo assim, são profissionais do sindicalismo. Não são professores.
Entrevista para ler no Expresso