O regresso dos professores “titulares”?
Paulo Guinote - Público
Enquanto docente choca-me a evidente opção de regressar ao aspecto mais problemático das reformas encetadas por Maria de Lurdes Rodrigues.
Ao analisar o programa do novo-velho Governo em matéria de Educação, percebe-se que no plano da pedagogia e do trabalho com os alunos nada de novo se apresenta que não seja conhecido desde os anos 80 e 90 do século XX, continuando a fazer-se crer que é novidade o que não passa de reformulação da então chamada “pedagogia do sucesso”. Espalham-se pelos parágrafos termos como “autonomia”, “cidadania”, “flexibilidade”, “inclusão” ou “participação” mas, nas medidas concretas, os mesmos são esvaziados da sua substância original.
Quanto à gestão escolar, percebe-se a partir da única novidade na equipa ministerial que a “descentralização” equivale à “municipalização” de centros de decisão que antes estavam nas escolas. “Avaliar o modelo de administração e gestão das escolas e adequá-lo ao novo quadro que resultou do processo de descentralização” (p. 22 do Programa do XXII Governo Constitucional) é quase a antítese do que se anuncia como o reforço da “autonomia das escolas e os modelos de participação interna”, em especial quando se lê que se pretende “dotar as escolas de meios técnicos que contribuam para uma maior eficiência da sua gestão interna, recorrendo a bolsas de técnicos no quadro da descentralização” e se anuncia o desejo de “concretização de um princípio de educação a tempo inteiro, ao longo de toda a escolaridade básica” (p. 142). Não é muito difícil perceber que parte da oferta educativa (extra?) curricular será assegurada por pessoal técnico com origem nas autarquias e não no corpo docente.
Enquanto encarregado de educação, há opções que me levantam enormes reservas ao nível da desvalorização de uma cultura meritocrática, em favor de um conceito “transbordante” de “inclusão” que leva à passagem de uma incontestável necessidade de igualdade de oportunidades no sistema educativo à quase obrigatoriedade de uma igualdade de resultados “à saída” (p. 141) que levará quase necessariamente a uma escola pública de segunda escolha da qual fugirão quase todos os que tenham meios para isso.
Mas é enquanto docente que me choca mais a evidente opção, disseminada em sinais dispersos pelo programa do governo, por regressar ao aspecto mais problemático das reformas encetadas por Maria de Lurdes Rodrigues. Não me refiro ao facto de se manter inflexível um modelo único, unipessoal e centralizado, de gestão escolar que já em muitos pontos do país foi submetido ao poder autárquico. Refiro-me ao regresso de uma lógica de divisão horizontal da carreira docente com a criação de um patamar reservado a uma minoria de docentes que terão acesso exclusivo a funções de chefia e a níveis de remuneração específicos. Em nome da necessidade, apresentada como imperiosa, de rever as chamadas “carreiras especiais”, considera-se incomportável para as finanças públicas um encargo anual de 200 milhões (calculados de forma truncada como “despesa”, escondendo que muito desse valor fica retido como “receita” do Fisco ou da Segurança Social/CGA) com as progressões nessas carreiras, pois isso limitará, alegadamente, “a política salarial na próxima década” e impedirá “uma política de incentivos na Administração Pública que premeie a excelência e o cumprimento de objetivos predefinidos” (p. 8).
Conjugando este propósito com o de “avaliar a criação de medidas de reforço e valorização das funções de direção das escolas, incluindo as chefias intermédias”, fica-se perante um cenário em que as funções de direcção e de chefia intermédia ao serviço de uma lógica de obediência hierárquica serão desligadas das dos restantes docentes “lectivos”. Sendo que, pelo seu número, os docentes que assim serão “valorizados” serão muito menos do que o terço antes reservado aos professores “titulares” do Estatuto da Carreira Docente de 2007.
O projecto de uma carreira docente “lectiva” quase plana, com um número muito reduzido de progressões, é antigo e foi tentado depois do primeiro governo de Sócrates, de forma algo tímida pelo do PSD/CDS nos tempos da troika, mas acabou por não avançar porque o congelamento das progressões e da contagem do tempo de serviço o tornou desnecessário.
Mas regressa agora de modo claro com este Governo, com pretextos demagógicos e fundamentação falaciosa. Com Alexandra Leitão a coordenar a revisão das “carreiras especiais” serão muitos os que perceberão que a forma abusiva como ela tratou diversas matérias enquanto secretária de Estado da Educação veio para ficar. E que a lógica dos “titulares” regressou em força e tem fortes âncoras nas escolas, entre os potenciais “valorizados”.