Carlos Rodrigues Lima
A pressão no regresso à normalidade só se explica pelo facto de que o que acontecia antes do coronavírus era tudo menos normal. Assim se explica a pressa para que tudo volte ao que era
OUVE-SE, VÊ-SE, LÊ-SE, sente-se no ar, a pressa. Há uma vontade enorme de regressar à dita normalidade. Até Marcelo Rebelo de Sousa, ponderado no último mês, não perdeu a oportunidade da cerimónia do 25 de Abril para regressar à política ativa, com um discurso pró-celebração do 25 de Abril, que mais não foi do que um estabelecer de diferenças com o candidato André Ventura, arregimentando votos no centro-esquerda para as próximas presidenciais. Enfim, o regresso à normalidade impõe-se. Ninguém sabe viver confinado, nem o Presidente que, recorde-se, numa primeira fase se autoconfinou.
Diz-se que a natureza do ser humano é a liberdade. Estar nesta espécie de prisão domiciliária, em que o telemóvel faz o papel de pulseira eletrónica, ainda que por razões sanitárias, será a antítese dessa condição. Talvez por isso, mais do que a ansiedade da reclusão, o grande problema mental deste País seja a ansiedade do regresso ao trânsito, às multidões (agora em menor número), ao stress do quotidiano, aos encontrões nos transportes, enfim, àquela normalidade das cidades, que tanto criticávamos mas, ao que parece, não sabemos viver sem ela.
A "normalidade do acontecer" é o grande objetivo para os próximos meses, até porque nunca foi questionada. Isto é, se o que existia antes do vírus poderia ser classificado como "normalidade". Simplesmente, acontecia. Era o que era, dizia-se. Daí que interrogações como a de Olga Tokarczuk, Prémio Nobel da Literatura, no último Expresso, pareçam esotéricas: "Não se terá dado o caso de termos regressado a um ritmo de vida normal? De o vírus não ser o distúrbio da norma, mas precisamente o contrário - o mundo agitado antes do vírus é que era anormal?" Sim, vivíamos a todos os níveis no anormal, tão anormal que foi preciso um "anormal" vírus para, por exemplo, a União Europeia começar a agir, de facto, como uma comunidade de países solidários entre si e não como um escritório de contabilidade apenas preocupado com o número do défice. O mundo era tão anormal que nos espantamos, depois do "anormal" vírus, com as águas cristalinas de Veneza, como se o normal fosse a poluição.
A anormalidade foi a medida corrente, ainda que disfarçada de "normalidade do acontecer". Tudo era tão normal que um juiz responsável pela prisão de um ex-Presidente do Brasil aceitou ser ministro de quem mais beneficiou com a sua decisão. Porém, durante a "anormalidade" do vírus, demitiu-se, acusando o troglodita a quem deu as mãos nos últimos anos de comportamentos ilegais. Por cá, era "normal" o sistema de justiça mobilizar recursos para prender um hacker, enquanto deixava a marinar as suspeitas por si tornadas públicas. Nesta nova "normalidade", Rui Pinto até teve direito a um apartamento da Polícia Judiciária. Assim como era "normal" uns 10 comunicados do Ministério Público sobre detidos por violência doméstica, roubo, assalto à mão armada e nem umas três linhas para anunciar a acusação contra Domingos Farinho, o professor em exclusividade da Faculdade de Direito de Lisboa, que (alegadamente, como era normal dizer-se) recebia uns valentes trocos por fora para escrever livros para José Sócrates, cuja "normalidade" dos seus mandatos como primeiro-ministro deveria envergonhar-nos.
Confinamento não é distopia, disse já Margaret Atwood, que nos mostrou uma realidade alternativa em A História de uma Serva. Vistas bem as coisas, o confinamento até ajudou a purificar o ar. A escritora canadiana também nos ensinou que o "normal" é aquilo a que estamos habituados. Mesmo que algo não nos pareça à primeira vista normal, com o tempo habituamo-nos e passará a ser a nova normalidade. Talvez por isso haja pressa em regressar à anterior normalidade, por muito anormal que fosse.