Há muito tempo que a educação escolar revela sinais de fragilidade. Por vezes, ouve-se mesmo dizer que “as escolas do século XIX não servem para educar as crianças do século XXI”. Como reinventar o modelo escolar, tal como o conhecemos nos últimos 150 anos?
Correndo o risco de uma simplificação excessiva, recordo uma série de palestras que fiz no Brasil, há cerca de dez anos, nas quais recorri às metáforas do quadro-negro e do celular para comparar dois ambientes de aprendizagem.
O quadro-negro é um objeto vazio (precisa de ser escrito), fixo (não se pode mover) e vertical (destina-se a uma comunicação unidirecional). O celular é um objeto cheio (contém as enciclopédias do mundo), móvel (desloca-se connosco) e horizontal (facilita uma comunicação multidirecional).
Quer isto dizer que o quadro-negro é inútil? Não. Nada substitui uma boa lição. Quer isto dizer que, a partir de agora, tudo será digital? Não. Nada substitui um bom professor.
Precisamos de construir ambientes educativos favoráveis a uma diversidade de situações e de dinâmicas de aprendizagem, ao estudo, à cooperação, ao conhecimento, à comunicação e à criação. Nesse sentido, a metáfora do celular é mais inspiradora do que a metáfora do quadro-negro.
Reações à pandemia
Em educação, a covid-19 não trouxe nenhum problema novo. Mas revelou as fragilidades dos sistemas de ensino e do modelo escolar. O que era assunto de debate entre especialistas passou a interessar toda a gente, sobretudo as famílias confinadas com os seus filhos que, de repente, se transformaram também em seus “alunos”.
Como têm sido as reações à pandemia?
Os governos têm sido imprudentes e até insensatos. Devemos reconhecer o esforço para manter uma certa “continuidade educativa”, com resultados aceitáveis para as classes médias, mas desfavoráveis para as classes populares. Todos referem que o recurso ao digital provoca ainda mais desigualdades, mas pouco, ou nada, tem sido feito para ultrapassar esta situação.
Muitas instituições, e também universidades, sobretudo públicas, ficaram bloqueadas numa discussão inútil sobre o uso ou desuso do digital e do “ensino remoto”. Outras, sobretudo privadas, transformaram o digital no novo Deus da educação. São dois disparates, do mesmo tamanho, ainda que de sinais contrários.
O melhor foram as reações de muitos professores que, em condições dificílimas, conseguiram inventar respostas úteis e pedagogicamente consistentes, através de dinâmicas de colaboração dentro e fora das escolas. A Unesco identificou e divulgou essas experiências, que constituem uma base importante para repensar o ensino e o trabalho docente.
E agora?
Alguns, advogam um “regresso à normalidade”, opção impossível e indesejável. Libertaram-se energias que não conseguimos colocar de novo dentro da caixa. E, de todas as formas, não seria desejável voltar a rotinas desinteressantes.
Outros, aproveitam a oportunidade para explicar que “tudo vai mudar”, rapidamente, com a desintegração das escolas e a transição para o digital. Na verdade, esta solução já era defendida, pelo menos desde a viragem do século, em discursos de “personalização” das aprendizagens, cientificamente legitimados pelas neurociências e com recurso à inteligência artificial.
Não me revejo nessas opções. Defender o imobilismo da “normalidade” é o pior serviço que podemos prestar à educação pública. Sustentar o confinamento, para sempre, da educação em espaços domésticos ou familiares seria abdicar de uma das mais importantes missões da escola: aprender a viver com os outros.
Acreditar que nada vai mudar ou que tudo vai mudar rapidamente são duas ilusões igualmente absurdas. Em educação, as mudanças são sempre longas, fruto do trabalho de várias gerações.
O recurso ao digital não é inocente, pois este “meio” influencia o acesso e a organização do conhecimento. Para além disso, o seu uso público é condicionado por ser controlado pelas grandes empresas privadas. Torna-se urgente assegurar o acesso de todos ao digital e valorizar o software livre, universal e gratuito. Mas a questão essencial nunca é sobre os instrumentos, é sempre sobre o sentido da mudança.
O sentido da mudança
Duas perguntas principais marcam o ritmo das interrogações pedagógicas do nosso tempo: como construir um ambiente educativo estimulante? Como entrelaçar o trabalho educativo dentro e fora das escolas?
À primeira pergunta responde-se com a metáfora da biblioteca. O novo ambiente escolar será parecido com uma grande biblioteca, na qual os alunos podem estudar, sozinhos ou em grupo, podem aceder e construir o conhecimento com o apoio dos seus professores, podem realizar projetos de trabalho e de pesquisa… A pandemia mostrou que não se aprende apenas através de aulas.
À segunda pergunta responde-se com a metáfora da cidade. Há 50 anos, uma geração notável de educadores construiu duas utopias: a educação faz-se em todos os tempos e em todos os espaços. A primeira, deu lugar à educação permanente, à educação ao longo da vida, que se tornou o mantra dos discursos e das políticas. A segunda, ficou largamente por cumprir, até que a pandemia mostrou que não se aprende apenas dentro das escolas. A educação faz-se em todos os espaços, na cidade.
Nas mãos de professores e alunos, com sensibilidade e tato pedagógico, o digital pode ser um instrumento importante para apoiar as mudanças necessárias na educação e no ensino.
E as universidades?
Quando era reitor da Universidade de Lisboa perguntaram-me onde estava o futuro das universidades. Respondi: na educação básica, no reforço de uma educação pública de qualidade para todos. Sem isso, dificilmente teremos boas universidades.
Mas é preciso fazer também a pergunta inversa: onde está o futuro da educação básica? A minha resposta é simples: está, em grande parte, nas universidades, porque são elas que formam os professores, porque são elas que têm a “massa crítica” necessária para reforçar a educação como bem público e bem comum.
Os problemas educativos, agora expostos com nitidez pela pandemia, não são novos. Estamos, sim, a assistir a uma aceleração da história. Os próximos tempos vão ser marcados por mudanças profundas. Hoje, mais do que nunca, precisamos de universidades com grande autonomia e liberdade, com espírito crítico, comprometidas com a inovação pedagógica e o reforço do espaço público da educação. É por aqui que passa grande parte do futuro das sociedades do século XXI.