Santana Castilho
A facilidade com que a democracia tolera o uso de estereótipos e preconceitos racistas talvez seja o corolário da sua incapacidade para remover as desigualdades estruturais.
A morte de George Floyd, estrangulado em público por um polícia, indignou o mundo. Há um par de anos, no auge de uma discussão política, um homem jovem, prosélito de Bolsonaro, matou pelas costas, com 12 facadas cobardes, um homem velho, apoiante de Lula e do PT. Alcindo Monteiro e Bruno Candé morreram na rua às mãos de fanáticos, porque não eram brancos. Por e-mail, um grupo nacionalista, a Nova Ordem de Avis - Resistência Nacional, ameaçou três deputadas e sete outros cidadãos, a quem deram 48 horas para deixarem o país. Recorde-se que a “Nova Ordem” foi um conceito político que fez escola durante o III Reich, proclamando a superioridade da raça ariana e o extermínio dos judeus, dos homossexuais, dos negros, dos ciganos e dos deficientes.
Nestes actos temos todo um programa de futuro, se nada for feito. Paulatinamente, as maiores atrocidades banalizam-se e na sociedade consumista em que vivemos tornam-se insuficientes as reacções dos que lutam por um viver mais solidário e mais justo. De modo falsamente complacente, assistimos a uma prática política, judicial e policial que permite a criação e funcionamento de organizações que professam e proclamam ideologias fascistas e nazis, coisa que o artigo 46.º, n.º 4, da Constituição, claramente proíbe.
É nisto que estamos, quatro décadas e meia depois de nos termos livrado de 48 anos do fascismo beato de Salazar? Quatro décadas e meia depois de Abril, o que falta fazer para recordar à consciência cívica da sociedade que sempre que a democracia recua avança a barbárie? O que há de comum entre estas manifestações do que de mais negro caracteriza a natureza humana, senão a desumanização de uma sociedade que retrocede mesmo naquilo que dávamos por adquirido e onde muitos chegam a negar o próprio holocausto?
No mundo, passámos o último século a constituir depósitos de armas sofisticadas e a engendrarmos estratégias fratricidas, que enriquecem poucos e desgraçam muitos. No mesmo oceano onde uns se banham em férias, morrem outros que fogem da guerra e procuram trabalho e pão para que os filhos sobrevivam.
As condições para que os movimentos populistas fortifiquem cresceram. A decantada luta contra a corrupção afirma-se incapaz de regenerar seja o que for. A mitomania de Trump e a bizarria de Bolsonaro fizeram escola e ajudaram a projectar os preconceitos. Os produtores das notícias falsas, que inundam as redes sociais, profissionalizaram-se ao jeito da Cambridge Analytica. É hora de nos opormos ao aumento de um sentimento generalizado de impotência democrática, entre nós irresponsavelmente ajudado pelas últimas decisões políticas.
A nossa incapacidade para analisar os riscos a que estamos expostos e a informação que temos à luz dos ensinamentos da história contemporânea é alimentada pela tendência para valorizar o que está facilmente disponível. Num rumo que devemos combater, quantas vezes teremos de ver os desmandos antidemocráticos, xenófobos e homofóbicos, que se vão multiplicando pela Europa, para nos darmos conta de que eles estão a chegar à nossa sociedade?
Aos portugueses pobres, aos portugueses que integram as diversas minorias étnicas da nossa sociedade, para além de uma economia que valorize o trabalho e promova o bem-estar colectivo, que não apenas o enriquecimento desmesurado do capital, falta uma justiça igual para todos, que sirva todas as culturas mas não tolere um só comportamento que ponha em perigo a coexistência pacífica entre cidadãos, a democracia e a Constituição, falta uma organização social e política liberta das clientelas partidárias e falta uma escola exigente, que anule as diferenças e não as agrave.
A facilidade com que a democracia tolera o uso de estereótipos e preconceitos racistas para estigmatizar e catalogar comunidades inteiras talvez seja o corolário da sua, até hoje, incapacidade para remover as desigualdades estruturais e crónicas da nossa sociedade, que favorece uns e discrimina outros. É redutor reduzir o problema à dicotomia clássica esquerda versus direita. Mas é urgente remover a extrema-direita criminosa da equação e combater os seus argumentos intelectualmente primários e socialmente tenebrosos, remetendo-a ao bordel, que é, de descrença na humanidade.
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