sábado, 29 de agosto de 2020

Temos uma nova DGS, a Direção-Geral da Saúde

LUÍS AGUIAR-CONRARIA

Em 1969, a PIDE mudava de nome. Fez parte da campanha de abertura do regime conhecida como a primavera marcelista. Historiadores dividem-se sobre o significado desta primavera e quais as intenções de Marcello Caetano, mas a verdade é que a transformação da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) em Direção-Geral de Segurança (DGS) foi pouco mais do que cosmética. A DGS continuou a repressão brutal da PIDE, com diminuto controlo judicial, ao serviço de um Estado autocrático e só viria a ser extinta com o 25 de Abril. Há alguma discórdia quanto à natureza do Estado Novo, alguns chamando-lhe fascismo, outros negando-lhe essa designação. Sem qualquer pretensão de rigor, chamo-lhe fascismo à portuguesa.

Nos tempos atuais, temos uma nova DGS, a Direção-Geral da Saúde. Também ela mostra pouco respeito pelas liberdades individuais, também a sua ação repressiva é feita em nome de um pretenso interesse superior, também ela procura impor uma forma de fascismo, o fascismo higiénico, e também ela parece estar isenta de controlo judicial relevante.

Antes de continuar, gostaria de lembrar que já vários tribunais, com a caução do Tribunal Constitucional, equipararam a prisão o isolamento imposto a alguns turistas nos Açores. Um tribunal chegou mesmo a afirmar que as quarentenas forçadas em quarto de hotel davam aos turistas menos liberdade de circulação do que aquela da qual reclusos em prisões tradicionais dispõem. Por isso, vários turistas têm sido libertados por ordem dos tribunais, argumentando-se que tal prisão é absolutamente desproporcional em não havendo um teste positivo à covid.

Nos tempos atuais, temos uma nova DGS. Também ela mostra pouco respeito pelas liberdades individuais, também ela procura impor uma forma de fascismo, o fascismo higiénico

Mas a verdade é que a nova DGS tem imposto igual pena a diversos cidadãos. Já por várias vezes denunciei a situação de idosos em lares, que passaram a viver num regime de reclusão. Um velho que saia de um lar por umas horas para ir ao médico está, no regresso, condenado a um isolamento não inferior a 14 dias: fica confinado a um quarto do qual não sai por duas semanas, mesmo que, em sua defesa, exiba um teste negativo à covid. E esta regra aplica-se mesmo a velhos com doenças neurológicas, para quem o isolamento pode ter consequências desastrosas e irreversíveis. Também já soubemos de pessoas condenadas a morrer em solidão nos hospitais portugueses. Mesmo em concelhos onde já passaram várias semanas desde o último caso de covid registado, uma vez entrados no hospital acabam-se as visitas e morrem sozinhos.

Mas, confesso, saber disto tudo e ter denunciado tudo isto nesta minha coluna não me preparou para o que se soube esta semana. Por causa de orientações da DGS, jovens e crianças retirados às famílias por maus-tratos são postos em regime de isolamento durante 14 dias. Em prisão, portanto.

Admito que o título deste artigo seja chocante, mas não sei que outro nome chamar a quem define estas regras. Crianças numa situação de fragilidade tremenda, a viver o pior momento das suas vidas, retiradas às famílias por ordem judicial são postas em isolamento durante 14 dias. Em nome de quê? Em nome de um vírus que para crianças e jovens é benigno e que praticamente não as afeta. (E isto não é a minha opinião, é o que está escrito em vários documentos oficiais, que estão publicamente disponíveis.)

Em nome de uma ameaça inexistente, uma criança resgatada à sua família não pode ser acompanhada por ninguém. Nem por uma tia ou por um irmão mais velho que tenha feito a denúncia. Ninguém. Entra na instituição e fica em isolamento. Há algum pediatra ou psiquiatra que tenha dito que, do ponto de vista estritamente médico, já nem digo humano, este tratamento é menos perigoso do que a covid? E de nada adianta fazer um teste à covid e dar negativo. As duas semanas de prisão são para cumprir. Isto tudo em nome da proteção aos cuidadores, como se eles não saíssem da instituição e não fossem a casa e às compras.

Daqui dou um abraço e agradeço à comissão instaladora da Associação AjudAjudar, que denunciou esta situação e apresentou queixa à Provedoria da Justiça. Mas o pior ainda estava para vir. Perante a denúncia, Graça Freitas já reiterou que não mudará as regras de isolamento. Limitou-se a dizer que, e passo a citar, “a revisão ‘pode’ passar pelo lado de o isolamento se fazer com condições para que as pessoas não se sintam abandonadas”. O sublinhado é meu: “pode”. Mantém o isolamento, mas ‘poderá’ vir a ser feito em condições em que as desgraçadas das crianças não se sintam abandonadas. Não é sequer um imperativo ético, é uma mera “possibilidade”.

Fascista é pouco.

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