Paulo Guinote
Não faço parte dos “donos do 25 de Abril” e acho que há muitos anos, para além de actividades nas escolas, que não me envolvo no cerimonial formal de comemoração da data. Não porque ela deva ser esquecida ou os próprios rituais eliminados, mas porque me sinto que estaria mal acompanhado na maior parte das iniciativas oficiais. Não sou dos que dizem que não serviu para nada, mas estou longe de o festejar porque serviu para tudo, para alguns. Não critico o regime democrático que instaurou, critico o que agora querem fazer passar por uma democracia plena, até alargada no seu arco de apoio à governação, quando o que se passa é uma degenerescência evidente dos procedimentos e uma mediocridade assustadora do pessoal político. Sinto-me, enquanto cidadão, ofendido por ter de escolher na maior parte dos casos, quando nos deixam votar entre opções medíocres, más ou muito más. Porque foi assim que as coisas evoluíram, sendo mais rápida a adesão às más práticas permitidas pela liberdade do que às suas virtudes. Não por falha do “sistema”, mas mesmo por uma espécie de sofreguidão e volúpia de quem desde cedo se apropriou do poder. Dos poderes. E modelou a sua acção à medida dos seus interesses, chamando-lhe “interesse colectivo” ou “comum”.
A culpa é dos cidadãos, que assim deixaram que fosse? Que votaram “neles”? Que não se envolveram de modo a que as coisas fossem diferentes?
Não sejamos ingénuos. A arraia-miúda só sobre na cadeia alimentar da política se tiveram o perfil adequado e a flexibilidade vertebral essencial para se adequar às situações. Os partidos e outras “organizações” rapidamente se transformaram em estruturas burocráticas que premeiam a lógica e disciplina da obediência hierárquica, mesmo quando se encenam dissidências. As verdadeiras “alternativas” surgem de mal disfarçadas cooptações. Os fenómenos “novos” rapidamente envelhecem e se distinguem do que havia antes. Os rostos são os mesmos ou são herdeiros do que eram e infirmam a crença numa evolução que aperfeiçoa.
Basta ligar a televisão e ver a naftalina que cobre a cerimónia no Parlamento onde a ética é definida por quem dá a senha para lhe marcarem a presença e a transparência é legislada de forma a que quem prevaricou sem decoro seja retrospectivamente ilibado. Onde a figura máxima da “Casa da Democracia” parece uma figura de cera premiada pela sua rebeldia juvenil. Em que os cidadãos são gozados quando tentam fazer algo fora da caixa, que está em letra de lei mas não é para levar a sério. Recentemente, ao contrário de quem gosta de me acusar de procurar protagonismos vários, disse aos meus colegas que me recusava a voltar a ir a reuniões encenadas com grupos parlamentares ou comissões de peixeiradas, onde se atropelam as regras com a maior falta de vergonha. Levo a maior parte do tempo a pensar até que ponto devo exercer auto-censura no que escrevo pois, para ser mesmo sincero, acho que somos governados há muito tempo por sucessivas camarilhas de mentirosos compulsivos, sendo excepção, seja a nível central ou local, quem se preocupa mesmo com o bem-estar dos seus concidadãos.
É simplista dizer que são todos iguais? Sim, claro, quem disse que a aldrabice e a mentira só têm uma modalidade? A “arte” está mesmo em fornecer-nos diferentes “alternativas” que não passam de diferentes mentiras. Porque a “verdade” (por relativa ou contextual que possa ser) tende a ser uma e as falsidades podem ser múltiplas.
E o fenómeno das fake news, convenientemente associadas às “redes sociais” e à vox populi de quem não entra nos grandes pactos comunicacionais do regime, tem sido de enorme utilidade para quem espalha notícias falsas a partir dos centros de poder, fazendo primeiras páginas há anos e anos com informação mistificadoras. Porque não tenham dúvidas que as fake news existam há muito mais tempo do que a invenção do termo. Temos um Presidente que já há décadas, enquanto “jornalista” ou “analista” crou entre nós os então chamados “factos políticos”. Temos uma imprensa amarrada por vulnerabilidade económica a estar nos favores de quem detém poder económico (público ou privado) para promover gurus de ocasião e comprar o silêncio sobre o que pode incomodar ou promover a sua divulgação quando já nada pode ser evitado. Em que se estabeleceu um pacto de bastidores de mútuo interesse para coordenar a divulgação de uma “realidade” conveniente aos interesses partilhados. Em que os ministros e “especialistas” aparecem quando querem e lhes dá jeito, não na sequência da sua chamada por ser isso de interesse efectivamente público. Costa e Centeno comunicam quando desejam aparecer. E a vénia é feita, a carpete adequadamente vermelha é estendida. A guarda pretoriana à esquerda (como em outro mandato era à direita) entra em cena se as coisas correm mal e usam as amaldiçoadas “redes sociais” para fazerem aquilo que dizem que as redes sociais não deveriam fazer: espalhar mentiras, insinuações, factos falsos. As estratégias de controle da informação na comunicação social dos tempos do engenheiro, pensadas inicialmente com durão/portas/santa (criação de “centrais de comunicação”, lembram-se?), vieram para ficar e apenas estão ligeiramente menos óbvias. Aprenderam a encobrir melhor o rasto dos favores. São mais insidiosos na forma como tecem a rede que os protege “da rua”. Que, como se sabe, em 25 de Abril de 1974 ficou serena, deserta, tendo caído a ditadura por obra e arte de alguma comissão parlamentar com silvanos e porfírios.
O espírito libertário ou liberal (conforme os gostos) do 25 de Abril está em quem resiste à cristalização destas estratégias, à adulteração da linguagem, à manipulação dos dados, não em que coloca um cravo na lapela um dia por ano. Em quem resiste, em quem corre o risco de ser difamado pelas costas, denunciado ou investigado por querer saber a verdade. Não em que se apropriou dos aparelhos ideológicos e persecutórios do Estado para os colocar ao serviço de alguns, em coreográfico rotativismo,
O 25 de Abril está morto? Viva o 25 de Abril!