Esquerda, direita; esquerda, direita – eram centenas de militares alinhados a desfilarem impecáveis pela avenida. No meio da parada, só o João não conseguia acertar o passo. Tropeçava nos próprios pés, enganava-se no compasso. Mas na assistência, os pais do rapaz, orgulhosos do seu rebento, bradavam para os outros: “Então, organizem-se! Não veem que estão todos mal?! O João é que vai bem!”
Esta história de caserna é o que me ocorre quando olho para a crescente vaga de negacionistas da Covid-19 que, à medida que a fadiga da pandemia se instala, alastra nas redes sociais como um vírus devorador de neurónios. Vaga esta atrás da qual vão as pessoas que gostam de ser do contra, alguns internautas desprevenidos e os adeptos das teorias da conspiração. Eu conheço vários, estou certa de que o leitor se deparará com outros tantos.
Há vários níveis destes negacionistas. No topo da escala estão os negacionistas alucinados. São os que veem em tudo forças escondidas para dominar o mundo, como nos maus filmes de ação ou de ficção científica. Os que dizem que tudo isto é muito “suspeito” e imaginam que a pandemia foi obra da China – um vírus criado em laboratório para arrasar e dominar de seguida o mundo. Ou os que acham que as vacinas em estudo trarão um chip localizador para nos vigiar e localizar. Ou que com a Covid só se quer confinar as populações para se instalarem antenas 5G por todo o mundo, torres estas que por sua vez enfraquecem o sistema imunológico do indivíduo. Não vamos elaborar sobre os diversos estágios de alucinação aqui envolvidos, estarão ao nível dos terraplanistas em matéria de morfologia da Terra. Adiante.
Depois, há os negacionistas chicos-espertos. Aqueles que encontram no discurso “aqui há gato” a única forma de darem nas vistas, porque no campeonato da inteligência e do bom senso ninguém lhes liga nenhuma. Alguns desses, além de dizerem disparates vários nas redes, onde lançam o caos com desinformação, preconceitos e suspeições totalmente infundadas, têm mesmo espaço de opinião com amplificação em órgãos de comunicação social. Há neste grupo perfis diferentes de pessoas: colunistas patetas e frustrados, mas também médicos, e esses são mais perigosos. Alguns entretiveram-se a desdizer, desde março, as principais indicações da DGS e das autoridades, contribuindo para desorientar ainda mais as pessoas, quando o que era preciso fazer era informá-las com o estado da arte da ciência, que também está a descobrir uma realidade completamente nova.
O terceiro grupo são os negacionistas libertários. Aqueles anarquistas tardios, que recusam a obrigação do uso da máscara como quem nunca ultrapassou o trauma de ser obrigado a comer a sopa em pequenino. Para quem a vida em sociedade só tem direitos e nenhuns deveres, e pensar no bem-estar e na proteção dos outros é algo tão distante como Vénus de Marte. O que importa é o seu umbigo e o que bem o seu dono quiser fazer com ele, e os outros que se danem.
Esses libertários andam normalmente de mão dada com os negacionistas ignorantes. Os que por sistema recusam as conclusões da ciência, quando as evidências científicas não são inteiramente consentâneas com o seu conforto ou com a manutenção da sua forma arcaica ou obtusa de fazer as coisas. São deste grupo os que também recusam as alterações climáticas, como se a ciência fosse uma matéria de crença ou de fé. No que toca à Covid, estes negacionistas recusam o perigo do vírus, alinhando com Bolsonaro e Trump na cantiga da “gripezinha”. Sublinham que a mortalidade não é muito elevada – coisa que é um facto –, sem perceberem que o perigo está na falência dos sistemas de saúde que geraria uma potencial mortalidade enorme. Desvalorizam os números, comparando-os com outras maleitas, quando estes números têm por base um mundo inteiro que se confinou e planos de contingência apertados. Nunca param para pensar na mortandade que seria se deixássemos o vírus à solta, fazendo o seu caminho sem quaisquer medidas de contenção.
Estes negacionistas ignorantes enchem as caixas de comentários, formam grupos “pela verdade” ou “Sairdecasa” e até convocam manifestações sem distanciamento e sem máscaras. Se Portugal e o SNS fossem organizados à medida do seu egoísmo, da sua desumanização e da sua insipiência, mereciam uma pulseira branca para as urgências Covid, que os colocaria algures no fim da lista da assistência e das vagas nos ventiladores. Felizmente, não é. O SNS quando nasceu foi para todos, mesmo para os idiotas e para quem não faz nada para o merecer.
Mafalda Anjos - Diretora