Santana Castilho
Vivemos numa sociedade desorientada entre a histeria e o desleixo, perdida no meio de um amontoado de pequenas razões incoerentes, governada por gente que pouco se importa com os danos que o medo impõe. A epifania da liberdade de Abril vai-se diluindo no seio de uma sociedade autoritária, onde, graças ao medo, os cidadãos trocam liberdade por segurança aparente e aceitam que se combata o vírus de pau na mão.
As regras opressoras, o controlo dos direitos individuais, a vigilância intrusiva e os abusos do Estado, consentidos por uma cidadania enfraquecida, vão-nos aproximando de novos autoritarismos, com aparência de democracia. Basta que atentemos em acontecimentos recentes:
– A ideia de nos obrigar a instalar a StayAway Covid era absurda e violadora das mais elementares liberdades. Por isso caiu, como um pesadelo. Mas jamais cairá o que ela revelou sobre a boçalidade política de quem tentou impô-la com recurso à intrusão policial.
– A PSP, diligente a responder à denúncia de um bufo anónimo, entrou na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, interrompeu uma aula e, à porta da sala escancarada para ventilação, multou um professor por, durante uma palestra de quatro horas e meia, ter retirado, por momentos, a máscara que usava. Esclareça-se que os 20 alunos presentes estavam a mais de cinco metros de distância do docente e de costas viradas para ele, atentos a outro professor, que fazia tradução simultânea para inglês. Acresce que o multado falava para um monitor porque, em rigor, se dirigia a 240 alunos que seguiam a aula via Net.
– A distopia orwelliana do 1984 aportou à Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa em 2020, ano da graça do SARS-CoV-2, sob forma de vigilância omnipresente: coleiras identificadoras em todos os circulantes e seguranças a controlar e delatar quem infrinja as normas sanitárias. Um sistema por pontos sociais, à chinesa, pode levar os prevaricadores à presença do Grande Irmão, desde que não usem uma máscara limpa e seca no campus universitário.
– Do que recentemente aconteceu numa escola de Rio de Mouro, em Sintra, onde um aluno foi suspenso das aulas por, segundo o próprio, ter partilhado o lanche com um colega que “tinha fome e não comia nada desde a manhã”, retive o desmentido da directora, que ao aluno se referiu assim: “Está numa turma onde não conhece ninguém, pelo que no intervalo procura a companhia de colegas de outras turmas, seus colegas do ano passado, algo que este ano tem que ser rigorosamente evitado, mas que ele já ignorou por diversas vezes e por diversas vezes foi alertado. Também foi já alertado para que quando comesse, sem máscara, claro, deveria afastar-se do grupo, algo que ele repetidamente ignora.”
Mais que a espuma das razões discutidas nas redes sociais (aluno generoso versus aluno desobediente), interessa-me o sentido profundo da justiça que a directora aplicou. Terá o aluno de 12 anos entendido a razão pela qual o acto de partilhar é agora punido? Para que quer uma directora a consciência (está numa turma onde não conhece ninguém…) se já tem um regulamento?
Vejo demasiadas escolas mais preocupadas com máscaras, medidas sanitárias e regras, que com aqueles que as têm de cumprir e fazer cumprir. Com as suas perdas emocionais. Com as suas ansiedades. Com o esmagamento dos padrões de vida democrática. Com o mal-estar colectivo. Afinal, com aquilo que uma escola deve ser e ensinar, particularmente num momento de retorno de múltiplos impulsos autoritários que, a propósito da “guerra” ao vírus, abrem caminho para o êxito de agendas indesejáveis. Gradualmente, o absurdo e a anormalidade vão sendo adoptados como o “novo normal”, por uma sociedade domesticada pelo medo e pela perda do senso comum.
A hipocrisia abunda e enoja: festas com dezenas de jovens são apontadas como focos de contágio, enquanto de milhares de passageiros amontoados às horas de ponta nos meios de transporte se diz não haver indício de surtos; pune-se uma criança que partilha um sumo com colegas, mas celebra-se a singeleza do Presidente da República, que divide com outra uma bola de Berlim; proíbem-se uns, inconstitucionalmente, de visitarem os seus mortos, quando outros, aos milhares e sem respeito pelas regras vigentes, se amontoam em Portimão para ver a Fórmula 1 e são abençoados pela engraçada Dra. Graça.
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