Os professores têm muitas razões para nem sequer suportarem ouvir o nome de Maria de Lurdes Rodrigues. Contudo — vista a história recente a partir da sua perspetiva e dos seus objetivos — devemos reconhecer que desferiu dois golpes de mestre na classe docente, que ainda não foi capaz de se redimir desse revés. Criou o atual regime de gestão, com a dominante figura do Diretor, e reformulou o regime de avaliação e de progressão na carreira, que foi sendo lapidado posteriormente. São estes os dois grilhões que amarram e sujeitam tenazmente os professores.
O atual regime de gestão pôs fim aos ventres de democracia que eram as escolas. Eram. Os alunos continuam a eleger os seus representantes por voto secreto e em sufrágio eleitoral universal, mas os professores não. O Diretor é eleito pelo Conselho Geral, após apreciação do seu projeto de intervenção no agrupamento de escolas ou escola não agrupada, o que, normalmente, implica a identificação dos principais problemas, a definição da sua missão, as metas e as grandes linhas de orientação da ação, bem como a explicitação do plano estratégico a realizar no mandato. E este é, no meu entender, um ponto basilar, objetiva e subjetivamente.
Para além dos poderes objetivos que a Lei confere explicitamente aos diretores — na avaliação dos professores e na intervenção decisiva no processo de eleição dos diferentes coordenadores, entre outros —, aqueles que resultam do modo como é eleito adquirem um peso muito significativo no quotidiano escolar. Na verdade, o pequeno colégio eleitoral constituído pelos membros do Conselho Geral elege uma figura uninominal que tem uma visão para aquela escola ou agrupamento. É ele/ela que tem, portanto, depois de eleito(a), a responsabilidade e o dever de a concretizar, ou seja, durante um mandato é a visão de uma pessoa que vai prevalecer em todo o modus faciendi escolar. Afinal, essa pessoa tem de cumprir aquilo que justificou a sua eleição. A vontade coletiva será sempre secundarizada, face ao peso do projeto eleito. Por isso, quando o diretor/a diretora quer mesmo, seja por uma via ou por outra, à primeira ou à segunda, a sua vontade acaba sempre por vingar, seja ela o projeto A, o projeto B, o programa informático C, a formação/capacitação D, E, F ou G a parceria H, a divisão do ano letivo em dois semestres, etc. As metas definidas justificam os caminhos.
Subjetivamente, os efeitos decorrentes do processo de eleição do Diretor não são de menor importância, bem pelo contrário. Nesta autêntica enxurrada normativa em que estamos mergulhados, há mais de 15 anos, os professores — entretanto também tomados por outras enxurradas ocupacionais — deixaram de ter capacidade para acompanhar, como soía, as novidades legais. Por outro lado, há muitos espaços vazios nos interstícios dos documentos legais. Nesses casos, prevalece sempre a interpretação/decisão do diretor. A autonomia, em tais circunstâncias, funciona bem. De qualquer forma, mesmo com a Lei do seu lado, muitos professores, em situações correntes do dia a dia escolar, preferem, cautelosamente, perder uma eventual contenda com o diretor a saírem vitoriosos desse diferendo e perderem, posteriormente, muito mais, pois toda a gente sabe que há mil e uma maneiras de retaliar, a coberto da Lei. O terreno é tão amplo que aí poderia levantar e aterrar um Antonov. Nem me dou ao trabalho de especificar.
O segundo grilhão é, como acima afirmei, o sistema de avaliação e a inerente progressão na carreira, com as prodigiosas represas instaladas no 4.º e 6.º escalões. Para passar, não basta merecer, é preciso haver lugar em sítio tão estrangulado. E é precisamente este toque de génio que faz toda a diferença. Tudo passa, como na Fórmula 1, a ser disputado ao segundo, à décima, à centésima, à milésima de segundo. Um pequeno detalhe num aileron, uma pequena peça de metal ou de plástico, uma troca de pneus mal calculada e… ganha-se ou perde-se a corrida. Só que na Fórmula 1, tudo isto é desejável, é louvável e necessário ao progresso do setor automóvel. No ensino, é o oposto: entramos num mundo miudinho, feito de miserável filigrana, de muitas coisas pequenas.
Estes dois grilhões — bem ligados pela desgastante corrente da formação/capacitação, que tem funcionado como um autêntico braço endoutrinador do regime — têm amarrado os professores a um quotidiano indigno da sua condição de mestres. Foi-se gerando, nas escolas, um letal veneno para a democracia, que deveria nascer e crescer no seu ventre. Grassa o autoritarismo, evidentes tiques de autocracia, abuso de poder e discricionariedade, que semeiam férteis searas de aquiescência, de subserviência e de medo. Há, por isso, muitas consciências amordaçadas, muitos atos a contragosto, muitas ações forçadas, autênticos festins de hipocrisia e conluios de traição. É claro que há também, felizmente, exceções a esta “regra” — gente conciliadora, que continua dialogante, que tenta trocar as voltas à brisa instalada — como houve, no passado, líderes que, em plena ditadura, sempre amorteceram, no que lhes foi possível, os efeitos da mão de ferro sobre o seu povo. Porém, todos concordaremos que não seria por termos um líder político local menos autoritário, mais tolerante ou dialogante que nos sentiríamos felizes a viver em ditadura. Claro que não.
As nossas escolas estão longe de ser os tais laboratórios de democracia de que fala João Costa. Os professores vivem num contexto de sobreocupação, de subjugação e medo. Não me parece gravidez democrática, mas de outra coisa, de uma besta de cenho bem mais carrancudo, que estamos a alimentar. Sei como poderíamos libertar-nos destes grilhões, mas, sinceramente, já não vejo suficiente espírito de abnegação, capacidade de sacrifício bastante nem a força que uma revolta exige. Sei como poderíamos libertar-nos, mas isso só me faz sofrer ainda mais.
Santa Páscoa, Professores do meu país!