Paulo Guinote - JL Educação
“O professor merece reverência, a começar pelo cargo que representa, pelo simples facto de ser professor. A partir do momento em que se mina esse sentimento, tudo pode acontecer.” João Lobo Antunes (Ensino Magazine, 2009)
Nem sempre é possível manter o debate em torno da Educação no plano elevado das ideias, dos conceitos, das visões estratégicas, das metodologias pedagógicas, quando o espaço público é invadido por uma investida alargada contra os professores, contra a sua dignidade profissional e mesmo pessoal, através de um linguagem intoleravelmente acintosa na forma e conteúdo.
Nas últimas duas semanas, os professores portugueses foram apresentados por alguma opinião publicada de uma forma torpe e difamatória por uma série de figuras públicas com espaço permanente na comunicação social (jornais, televisões), sem direito a qualquer tipo de contraditório, seja por parte dos próprios, seja por parte de quem lhes permitiu esse tipo de discurso que vai muito além da liberdade de opinião, pois apresenta como verdadeiros factos que são falsos.
Tivemos na televisão pública, em dose dupla, um “especialista em comunicação” declarar que os professores são “miseráveis”, “idiotas”, responsáveis por uma “borga” de décadas” que teria destruído o sistema de ensino, conduzindo os alunos a “resultados miseráveis” (Rodrigo Moita de Deus, RTP3, 17 e 24 de Novembro). Em outro canal televisivo, um ex-bastonário da Ordem dos Advogados e um dos pretensos “senadores” do regime (José Miguel Júdice, TVI24, 20 de Novembro) considerou-os uma “raça estranha”; um dos articulistas residentes do que se pretende ser um semanário de referência, escreveu que eles representam o “triunfo da mediocridade” e que se caracterizam por uma “total ausência de qualquer avaliação de desempenho” (Miguel Sousa Tavares, Expresso, 25 de Novembro); um outro considerou que os professores viveram até 2011 “incólumes” a qualquer corte nos seus direitos, enquanto um escriba menoríssimo, achou-se no direito de afirmar que os professores são uns “privilegiados” que nunca foram alvo de qualquer avaliação para progredirem na carreira (um desconhecido Rodrigo Alves Taxa no jornal I).
Mas outras figuras aproveitaram as colunas de “opinião” para repetirem críticas, qualificando os professores como “medíocres”, “privilegiados”, seres menores e incapazes de quererem ser avaliados pelo seu “mérito”. Em outro programa da RTP3, um sortido de eternas jovens esperanças políticas, (José Eduardo Martins, Pedro Adão e Silva e Rui Tavares) preocuparam-se mais em criticar os “excessos” das reivindicações “corporativas” do que em analisá-las com objectividade. Pedro Marques Lopes escreveu (a 19 de Novembro, no DN, pela enésima vez?) que “ o que ficou, pela enésima vez transparente, é que a passagem do tempo tem uma importância vital para os professores muito simplesmente porque é o único critério para a sua progressão nas carreiras”, enquanto o subdirector do Jornal de Notícias, Anselmo Crespo de sua graça, decidiu apresentar como “paradigmático” o caso dos professores quando se trata de “discutir progressão profissional apenas com base no número de anos de trabalho, sem discutir os critérios de avaliação que levam a essa progressão” (JN, 20 de Novembro).
Estes são apenas alguns exemplos, de entre outros, de gente qualificada e informada para apresentar as questões com rigor e não com base em preconceitos ou ódios pessoais. São pessoas com obrigação de saberem do que falam ou sobre o que escrevem. Até porque ao longo dos anos existiu um esforço por explicar-lhes que as coisas não são como andam a repetir desde há muito, por exemplo, sobre a ausência de avaliação dos professores. Talvez o maior insucesso dos professores tenha sido exactamente a incapacidade para comunicarem os factos reais. Ou então passa-se outra coisa. Que me parece ser a permanência de um ódio visceral em alguns sectores das nossas pseudo-elites políticas e intelectuais (?) aos professores. Tudo porque estes decidiram reclamar quase uma década de tempo de serviço que se quer “desaparecido” da sua carreira, acrescendo que em troca receberam um vago “compromisso” de futura negociação sem qualquer outra garantia.
Há que separar dois tipos de críticas: as meramente biliosas, estapafúrdias e reveladoras de eventuais problemas de défice cívico (a generalidade das adjectivações boçais de um Rodrigo Moita de Deus) das que são factualmente falsas e devem ser desmentidas acerca dos “privilégios” dos professores, da alegação de terem passado incólumes à crise financeira e orçamental até 2011 ou de não terem avaliação e progredirem de forma “automática”. Porque muitas destas falsidades são voluntárias, seja por má-fé, seja por prescindirem de qualquer tentativa de verificação factual.
- O desempenho dos alunos portugueses foi dos que melhor evolução teve em testes internacionais (TIMMS, PIRLS, PISA), ultrapassando os de alunos de países que nos quiseram apresentar como modelares. No caso dos PISA, Portugal é mesmo “ dos poucos países que no PISA 2012 reduziu simultaneamente a percentagem de low performers e aumentou o peso de top performers.”[1] Afirmar que os resultados dos alunos portugueses são miseráveis é, antes de mais, ofender os próprios alunos.
- Os professores tiveram um congelamento da progressão nas suas carreiras desde 30 de Agosto de 2005 a 31 de Dezembro de 2007. Não foi apenas em 2011 que os professores sofreram com a crise orçamental. A 1 de Janeiro de 2011, apenas recomeçou um processo que vai com quase uma década no fim deste ano de 2017.
- Para além disso, depois de múltiplas versões que limitaram através de quotas a progressão dos professores, permanece no Estatuto da Carreira Docente desde a versão do decreto-lei 75/2010 de 23 de Junho, um triplo estrangulamento na progressão, em três momentos da carreira. No nº 3 do artigo 37º determina-se que “A progressão aos 3.º, 5.º e 7.º escalões depende, ainda, dos seguintes requisitos: a) Observação de aulas no caso da progressão ao 3.º e 5.º escalão; b) Obtenção de vaga, no caso da progressão ao 5.º e 7.º escalão.”
Isto é bem claro e nem sequer deveria merecer discussão. A observação de aulas tem sido feita. O acesso aos escalões referidos tem sido objecto de quotas e, por muito que eu discorde do método, impediu qualquer tipo de progressão automática, muito menos a chegada ao “topo da carreira” nos anos que mesmo alguns governantes têm ajudado a difundir para a opinião pública.
As sociedades definem-se também pela forma como os professores são tratados e respeitados, nomeadamente por quem tem maior responsabilidade na informação da opinião pública. Esse respeito deve ir para além dos circunstancialismos particulares de cada momento ou dos conflitos políticos em decurso. É atribuída a Erasmo de Roterdão a afirmação de que “a primeira fase do saber é amar os nossos professores”. E é bem verdade que há entre nós quem abomine o saber, o conhecimento e aqueles que fazem ofício da sua transmissão. Pretendem uma sociedade domesticada pela ignorância, com a ressalva dos seus próprios nichos de privilégio privado.
A ausência de uma defesa clara dos professores nestes momentos de conflito mais aberto por parte dos responsáveis políticos do ministério da Educação tem, em meu entendimento, um significado importante, pois reforça a clivagem que já vem de longe entre decisores políticos e professores e a enorme desconfiança da generalidade destes em relação àqueles. Com interesses circunstanciais contrários ou não, parece-me impensável que num país que em alguns momentos se quer civilizado, “europeu”, desenvolvido, a classe docente possa ser assim difamada em terreno público perante o silêncio do ministro da pasta e dos seus secretários de Estado. Sabemos que existem antecedentes piores, mas a omissão perante este tipo de ofensas não é argumento. Tiago Brandão Rodrigues, Alexandra Leitão e João Costa têm uma missão pedagógica a desempenhar nestas matérias, ou tornam-se apenas versões menos agressivas da tríade Maria de Lurdes Rodrigues, Valter Lemos e Jorge Pedreira que em 2007 apostaram em virar a opinião pública contra a classe docente no seu todo. Há que nomear quem deve ser nomeado, porque se querem a responsabilização dos professores, também devem ser responsabilizados, nem que seja politicamente.
Os que desrespeitam os professores por acção ou omissão.
JL, 06/12/2017