Educação e sinais dos tempos
António Jacinto Pascoal
Supor que o direito à aprendizagem e ao sucesso educativo (eis a grande obsessão) reside numa solução exclusivamente escolar é um erro fatal.
Quem, tendo frequentado uma formação sobre Autonomia e Flexibilidade, não reparou na insistência no discurso da boa-vontade, da renovação e da euforia dos novos tempos? Na assunção de que novos métodos (leia-se metodologias), outras práticas centradas nos alunos, torná-los-ão agentes do seu próprio sucesso, cidadãos mais felizes (isto foi sublinhado numa das formações), menos enfadados com as aprendizagens e, sobretudo, dotados de competências para “empregos ainda não criados, para tecnologias ainda não inventadas, para a resolução de problemas que ainda se desconhecem” (DL n.º 55/2018, 6 de Junho). As instâncias que tutelam o ensino, ao que se sabe preocupadas com o facto de que “nem todos os alunos vêem garantido o direito à aprendizagem e ao sucesso educativo” (idem), encenaram uma nova política de educação que, levada a sério, nos esclarece sobre o que é, de momento, politicamente correcto.
Isso inclui uma boa percentagem do currículo aplicável em projectos transversais que nem todos percebem muito bem o que são e como encaixam nas suas disciplinas, autonomia dos docentes nos métodos de avaliação e disparidade nos critérios, o que pode significar perder de vista um sentido comum nas práticas pedagógicas. Considera-se, igualmente, que o ensino, como existia, espartilhava saberes, era pouco colegial e insistia em individualizar-se nas capelinhas disciplinares. Verifica-se, entretanto, um extremo cuidado dos docentes em verbalizarem a recente doutrina educativa e em usarem os eufemismos da nova ordem. Ao que parece, evita-se falar em pesos e ponderações (agora tabu), devendo os alunos ser avaliados nos vários domínios, algo que entra em contradição com velhos instrumentos de avaliação.
Tudo isto não é muito claro. Mas para que os docentes se sintam convencidos de que aquilo em que foram envolvidos faz sentido, é-lhes explicado que a sua liberdade vai ao ponto de optarem por subtrair as suas disciplinas aos projectos colectivos, que lhes são permitidas formas de avaliação mais amplas e justas, que a sua acção, estimulando o trabalho interdisciplinar, será sempre bem-vinda. Todos são chamados a cooperar. De alguma forma, o reconhecimento de tantas benesses é tão atraente como os presentes envenenados.
Passou-se também a ideia de que o aborrecimento deve ser extirpado da sala de aula. Mas de que forma deixarão as aulas de ser aborrecidas, na perspectiva dos alunos, senão deixando de ser aulas? Não vale a pena fugir: daqui a 300 anos, quando não se souber que empregos irão surgir nos três ou quatro anos subsequentes, as aulas, se as houver, haverão de aborrecer sempre alguém. A vida é assim.
De resto, a dotação de competências a alunos, com vista a empregos ainda não criados, é o tiro no escuro costumeiro e simultaneamente algo que a Escola nunca deixou de fazer. Nós não conhecemos o futuro – podemos ter uma ideia aproximada, mas somente em conjectura. A Nokia, por exemplo, não imaginaria como o futuro lhe haveria de ditar uma sentença de morte. O que nós conhecemos é o passado e conhecemos o presente e é nele que vivemos e é nele que devemos resolver problemas. Supor que o direito à aprendizagem e ao sucesso educativo (eis a grande obsessão) reside numa solução exclusivamente escolar é um erro fatal e uma forma subtil de descarregar o ónus no sistema de ensino em geral e nos professores em particular. Enquanto os problemas da pobreza, dos salários baixos, das condições socioeconómicas, da habitação e da estabilidade profissional não forem resolvidos, não haverá direito efectivo à aprendizagem nem sucesso (essa faca de dois gumes) educativo. É que, diga-se o que se disser, os alunos não partem de condições sociais igualitárias nem de circunstâncias globalmente justas para poderem emergir em igualdade de oportunidades. Não admira o fracasso (para não usar o termo insucesso) que muitos experimentam. Haverá sempre expedientes a salvaguardar as elites, quanto mais não seja pelo poder financeiro.
Para citar Tenesse Williams (“a catástrofe do sucesso”), “a pureza de coração é o único sucesso que vale a pena termos”. Quando se circunscreve o sucesso – muitos preferem o termo êxito, dizendo respeito a saída, passagem – a resultados escolares, esquece-se que uma boa parcela da vida não tem nada que ver com Escola, mas com a nossa relação com os outros e com a forma como os outros nos olham, por sermos quem somos. E, sobretudo, com o que nós mesmos aceitamos naquilo que somos. Ninguém nos dá um diploma por isso.
Quanto à prática docente, o que penso é que os professores estão a ser paulatinamente arredados das funções para que foram formados ou para que se formaram e talvez sejam eles, antecipadamente, o bom exemplo daqueles que deveriam ter sido preparados para empregos ainda não criados, para tecnologias ainda não inventadas e para a resolução de problemas que ainda se desconhecem. Este é um problema do presente para o qual o Ministério da Educação é bem capaz de não ter resposta cabal. Mas a sua propaganda tratará disso em conformidade.
Não sendo um pessimista, também não creio nas grandes doutrinas. A minha é bem mais curta: darei o meu melhor e farei os possíveis para que se sintam bem ao pé de mim. Não tenho vocação para muito mais.