Paulo Guinote
O discurso sobre a nossa Educação está repleto de referências a “utopias”. De forma recorrente surgem políticos e pedagogos a justificar as suas opções com o caminho em direcção a uma “utopia” que eles consideram ser o “sonho” que a todos deve mover e que por ser inalcançável por definição impossibilita qualquer avaliação da sua validade.
Não é que considere errado o desejo de algo perfeito e por extensão socialmente justo e individualmente compensador. Pelo contrário, se não nos guiarmos por ideais, deixa de existir um rumo e sentido para as nossas acções. O que me irrita, que sou pessoa assumidamente imperfeita e por certo inadequada para viver numa qualquer ilha distante de profundamente aborrecida fraternidade, é que o recurso à “utopia” é tantas vezes feito para legitimar práticas que nos conduzem a realidades bem distantes de qualquer estado ideal de imaculado bem comum. Não é raro que a “utopia” não passe de justificação para a imposição de credos de facções ideológicas específicas que assim julgam ter conseguido o argumento decisivo para arrasar qualquer crítico.
Quem ousa criticar a “utopia”, o “sonho que comanda a vida”? Quem pode estar contra uma Educação Ideal, Integral, Humanista, Solidária, Inclusiva, de Sucesso? Só mesmo alguém naturalmente insensível, cruel e intolerante. Ou então, proponho eu como alternativa, alguém que tente ver, para lá da “narrativa das utopias”, o modo como se operacionaliza, no concreto, o caminho para os amanhãs radiosos.
Sempre encarei os activistas “utópicos” como sendo anti-sistema, anti-poder, como alguém que quer lutar contra o que está e o que é injusto, não cedendo à tentação de fazer parte da corte dos poderosos. Mas, nos dias que correm, encontro estes “fazedores de utopias” encostados ao “sistema” e ao poder que está, mais preocupados na sua manutenção e no aperfeiçoamento das engrenagens que tolhem a liberdade e a justiça que tanto proclamam, mas poucos praticam e muito menos admitem se for para contrariar os modelos únicos de virtude. É por essa altura que acho que o seu domínio é mais o da ficção. Da ficção útil à narrativa de um smart power, que esvaziou as palavras de sentido e que, para usar mais algumas ideias de Byung-Chul Han, aposta na promessa de mais liberdade e escolha (leia-se “autonomia e flexibilidade”) para nos tornar menos livres (Psychopolitics, Londres: Verso, 2017, pp. 1ss)
É curioso que raramente tenha lido estes “utopistas” sobre temas que, na sua terrena condição, tornam a vida nas escolas cada vez mais servil. Não os li ou ouvi sobre a forma como a gestão escolar se resumiu a um modelo hierarquizado, baseado na obediência e nomeação, com pulverização dos princípios democráticos, embora falem muito em trabalho colaborativo. Não os li ou ouvi sobre a prevalência dos critérios da “racionalidade financeira” no encerramento de escolas de proximidade e o desenraizamento precoce de crianças das suas comunidades, apesar de os ler defender profusamente medidas em defesa do “interesse dos alunos”, Não os li ou ouvi intervir de forma clara contra as sucessivas narrativas produzidas pelo poder sobre a carreira docente e os seus encargos, mesmo se fazem elogios frequentes, vazios de significado, em prol da dignidade docente. Dignidade docente que parece apenas ser reconhecida a quem adere às suas utopias particulares e se deixa doutrinar sem revolta em “formações” frequentemente com contornos muito pouco utópicos.
Em caso de dúvida, perante a ficção do poder a que se acomodaram, optam pelo silêncio sobre as questões incómodas, refugiando-se na nostalgia das leituras de outrora e quase se convencem que ainda estão do lado dos oprimidos e que não são uma útil ferramenta da psicopolítica do sucesso low cost.