segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

A “autonomia” em Educação continua uma miragem

Paulo Guinote

Tomada pelo seu valor facial, esta retórica levaria a acreditarmos na chegada de uma era dourada sem igual na Educação.

Somos inundados pelo discurso da “autonomia” na Educação e anuncia-se uma liberdade como nunca terá existido para as escolas e os professores desenvolverem a sua actividade. Tomada pelo seu valor facial, esta retórica levaria a acreditarmos na chegada de uma era dourada sem igual na Educação. Só que o problema é quando passamos da análise das declarações públicas para os normativos publicados, para as “ferramentas” legislativas que, no concreto, são a clara antítese de uma garantia de autonomia para as decisões ao nível da escola ou da sala de aula.

Passemos adiante a promulgação do diploma da municipalização que só os muito ingénuos ainda não descodificaram ou os distraídos não perceberam que irá transformar a direcção dos agrupamentos escolares em repartições municipais a reportar tudo ao senhor vereador ou ao chefe de divisão em que sejam delegados esses poderes. Concentremo-nos em duas “novidades”, separadas por poucos dias, que se devem ao esforço do secretário de Estado João Costa em “reformar” o sistema público de ensino à medida de uma escola mínima de baixo custo, apresentada como sendo uma “escola de sucesso”, que até já motivará a curiosidade de outros países.

Em declarações recentes, ao apresentar um novo ciclo de avaliação externa das escolas, João Costa acaba de anunciar que a “inclusão” passa a funcionar como “avaliação chave” do que é “uma escola de qualidade”. O que à primeira vista parece razoável mas que, se pensarmos melhor, revela uma interferência directa do decisor político na acção de um organismo que deve ser essencialmente técnico.

Lendo o resto das declarações, percebe-se que o que está em causa é a progressiva diluição do papel da Inspecção-Geral de Educação e Ciência (IGEC) na avaliação das escolas, introduzindo cada vez mais elementos externos nas equipas de avaliação. No ciclo avaliativo que terminou as equipas tinham três elementos, sendo um dos elementos externo à IGEC. Agora anuncia-se uma novidade que será a inclusão nas equipas de “pessoas de reconhecido mérito, que tiveram funções na escola para trazer conhecimento de terreno ao processo avaliativo”, ficando sem se perceber quem escolherá essas pessoas e com base em que critérios.

Em Março de 2017, quando procurava impor a generalização das suas políticas de “autonomia e flexibilidade curricular”, João Costa surgiu a criticar de forma explícita a acção da IGEC, declarando que as “melhores práticas pedagógicas” implementadas em algumas escolas “vivem sob a espada de uma inspecção que pode ir lá e dizer: isto não se faz porque não está previsto na lei”. Por “melhores práticas pedagógicas” o governante em causa considerava aquelas que estariam conforme às orientações que fez aprovar nos decretos-lei 54 e 55/2018.

Na sequência da aprovação desses decretos, já no início de Julho de 2018, seriam feitas declarações sobre o papel que teria a IGEC na fiscalização da sua aplicação nas escolas, que mereceram forte repúdio do Sindicato dos Inspectores da Educação e Ensino. Em carta ao ministro da Educação, podia ler-se que “os inspectores da Educação não aceitam ser instrumentalizados e usados como polícias do Ministério da Educação e não aceitam desempenhar este papel, porquanto o mesmo não se coaduna com a missão e competências da IGEC legalmente consagradas”. Acrescentava-se ainda: “Quando é pedido ao inspector que verifique se as escolas estão a cumprir as instruções enviadas às escolas pelo ME e, em caso de incumprimento, identificar os motivos, isto é apoio?” “Não são de agora as afirmações produzidas por elementos que integram o ministério que V. Ex.ª tutela que se referem aos inspectores como aqueles que vão às escolas ‘de espada em riste’, e que coarctam tudo o que de bom e inovador as escolas querem realizar! Efectivamente, elementos do ministério de V. Ex.ª tudo têm feito para denegrir a imagem da Inspecção e dos inspectores!”

Estive num passado recente longe de ser um acérrimo defensor da acção da IGEC em algumas das suas intervenções de inspecção administrativa, mas as minhas razões prendem--se com aspectos técnicos, com falhas de controlo das situações concretas em favor de análises documentais e burocráticas. Em nenhum momento acho razoável que a IGEC se torne uma espécie de “braço armado” do legislador para questões pedagógicas ou que, se resistir, a sua acção seja condicionada com a presença de elementos exteriores que acabem por esvaziar a sua autonomia funcional.

Mas a autonomia também é uma palavra morta quando se procura limitar a própria formação contínua dos docentes, afunilando-a para a doutrinação nos diplomas “gémeos” (54 e 55/2018) que parecem ser os pilares da concepção que João Costa tem do funcionamento das escolas.

O Despacho n.º 779/2019 de 18 de Janeiro, que “define as prioridades de formação contínua dos docentes, bem como a formação que se considera abrangida na dimensão científica e pedagógica”, é uma peça central no esvaziamento de qualquer pretensa “autonomia” dos docentes nas suas opções sobre a formação relevante para a sua progressão na carreira. Ao definir no Artigo 2.º como duas das três prioridades a “operacionalização e avaliação das aprendizagens, nos termos do Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de Julho” e “o regime jurídico da educação inclusiva, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de Julho”, confina-se a formação dos professores a uma mera doutrinação nas ferramentas legislativo-ideológicas produzidas pelos actuais governantes.

Muito grave é ainda considerar que essa formação, assim como na disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento”, se deve integrar na “dimensão científica e pedagógica”, enquanto os docentes ficam limitados a só poderem frequentar formação em “conteúdos inerentes ao grupo de recrutamento ou de leccionação do docente”, o que é uma evidente contradição com o discurso contra a compartimentação disciplinar e a necessidade de se promoverem abordagens transdisciplinares para as “competências do século XXI”. De acordo com estas determinações, um docente que pretenda frequentar acções em áreas disciplinares que se cruzem com a sua (alguém de História como eu, que tenha interesse em conteúdos de Filosofia, História da Arte ou Antropologia, por exemplo) não tem qualquer garantia que as mesmas lhe sejam contabilizadas para as horas necessárias à progressão.

Mas a cereja no topo do bolo é considerar que para elementos das direcções e das chefias intermédias, as áreas de “Formação educacional geral e das organizações educativas”, “Administração escolar e administração educacional” e “Liderança, coordenação e supervisão pedagógica” podem ser consideradas na dimensão “científico-pedagógica”.

O horror ao Conhecimento, à sua actualização para além de “aprendizagens essenciais” e ao que o vai enriquecendo, a par da imposição de formações doutrinárias e ultradireccionadas para o “sucesso” e a sua representação burocrática ficarão como uma triste herança deste mandato na Educação. A “autonomia” em Educação continua uma miragem.

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