Quermesse eleitoral em curso
Santana Castilho
Três membros do Governo e o Presidente da República defenderam a abolição das propinas no ensino superior, por considerarem que são factor de desigualdade social. Vejamos por que razão, ao invés, a medida transfere o dinheiro dos mais pobres para os mais ricos.
Com os dados disponíveis, referentes a 2017, sabemos que frequentavam o ensino superior 361 mil 943 alunos, dos quais 72 mil e 26 não pagaram propinas, graças às bolsas de estudo. Ainda que sem expressão numérica apurada, existe um outro conjunto de estudantes, excluídos pelos critérios limitativos das bolsas, sem recursos para pagar as propinas e outros custos bem mais relevantes. Só a ampliação desses critérios e o aumento dos valores das bolsas resolverá a exclusão por carências económicas e constituirá medida de política socialmente justa. Se se abolirem as propinas, significa isso que todos os portugueses, mesmo os mais pobres (isentos de IRS mas não isentos dos impostos indirectos, os socialmente menos justos) financiarão a formação de alguns portugueses, entre os quais os mais ricos. Assim, não combatemos a desigualdade social de que Marcelo falou, antes alimentamos a quermesse eleitoral em curso, iniciada com a medida iníqua, por idênticas razões, de atribuição de manuais escolares a todos (cerca de 130 milhões de euros, licenças digitais incluídas).
Longe de mim considerar-me satisfeito com a percentagem de portugueses com formação superior, a qual é inferior à de sociedades com que queremos convergir. Mas a questão das propinas, trazida ao debate público pela prioridade máxima de repente atribuída à massificação do ensino superior (já há quem fale em torná-lo obrigatório), merece alguma reflexão e resposta a questões simples (antecipo que os arautos da coisa lhes possam chamar simplórias), a saber: os 30 mil empregos existentes, sem candidatos, pedem habilitações de nível superior? Porquê o espanto por apenas 4 em cada 10 dos jovens que terminam o secundário demandarem o ensino superior, se a prioridade do governo PS (Sócrates) e PSD (Passos Coelho) foi o secundário profissional? Quantos licenciados estão no desemprego ou se arrastam penosamente nos call centers e nas caixas dos supermercados? Quantos milhares emigraram e enriquecem hoje economias concorrentes, financiadas pelo Estado português? Quantos doutorados e investigadores são precários miseravelmente pagos, ou desempregados?
Dir-me-ão que nenhum dos nossos desafios de futuro se resolverá sem o aumento da formação superior dos portugueses e eu concordo. Mas o acréscimo deve ser ponderado: que não signifique diminuição da qualidade; que vá de passo síncrono com a inversão do paradigma vigente (fala-se sempre da academia não responder às necessidades das empresas, mas não se fala da economia não criar oportunidades de empregos decentemente remunerados para os jovens que ela forma); que dele não resulte mais médicos e enfermeiros a servirem sistemas de saúde estrangeiros, outrossim a acudirem à degradação do nosso. Porque a consideração destas premissas encorajará muito mais a procura do superior que a abolição das propinas.
Gostaria eu que o ensino superior fosse gratuito, como na Alemanha? Que os transportes públicos fossem gratuitos, como no Luxemburgo? Naturalmente que sim … se a dívida do Estado não fosse o que é. Naturalmente que sim, se as consequências financeiras de tantas políticas sem nexo não fossem encobertas por engenhosas burcas dissimuladoras, como a que tapa os 5% do OE de 2019 para “despesas excepcionais”, quatro mil milhões que passaram sem explicação, graças à generosidade parlamentar do PCP e do BE.
É verdade que o artigo 74º da Constituição estabelece que caminhemos para a gratuidade de todos os graus de ensino. Mas não menos verdade é que tal imperativo constitucional, em sede interpretativa, se subordina a outros, igualmente constitucionais, como seja o da “reserva do possível” (possibilidades materiais mobilizáveis) ou o da equidade. Sim, equidade, porque é bom não esquecer que a gratuidade da quermesse eleitoral em curso, pródiga em medidas cegas, de cariz populista e de aplicação universal injusta é, no limite, custeada pela inexistência de apoios vitais aos que mais precisam e sofrem, por serem os mais pobres.
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