Nunca senti tanto a imperiosa necessidade de agradecer publicamente a um Professor a sua intervenção crítica em relação ao Ensino e à Escola, como ao ler o artigo de Santana Castilho,
“A política indecorosa de João Costa no confronto com Crato”. E faço-o, na base da minha experiência que ultimamente se alargou ao 1.º ciclo, relevando o que, no final do artigo, o autor afirma, com autoridade e num acto inteligente de alerta, em relação ao desenvolvimento gradual da capacidade de pensar abstractamente (12 aos 20 anos), enquanto dos 6 aos 12 anos a “capacidade de pensar com lógica se desenvolve de forma também gradual,” mas numa dimensão predominantemente concreta.
Ainda que em muitas situações tenha sido também crítica em relação ao professor Nuno Crato, nomeadamente no seu pouco apreço pela Escola Pública, sem dúvida que a Reforma de 2003, na qual trabalhou com afinco João Costa e os do “perfil do aluno do século XXI”, fez desmoronar nos professores o sentido de ensinar, não me canso de o repetir, numa atitude ministerial perversamente consciente, movida pela avidez de transformar os professores em meros funcionários públicos, obedientes à esterilidade e ao absurdo de aventuras e teorias que, neutralizando o estudo, os submergiam ainda em papel, na redacção vã de relatórios e afins, aumentando desumanamente o seu cansaço e a consequente desmotivação. Surpreender-se-á alguém com o porquê de haver cada vez menos jovens a escolher a carreira de professor?
Nunca tanto se falou em pedagogia e respeito pelos alunos, como na preparação e concretização da Reforma de 2003 cujo espírito se mantém. No entanto, aquilo a que temos vindo a assistir desde então é de uma flagrante falta de respeito pelos alunos e pelo acto de aprender. E assim como se exige trabalho extenuante para os professores, treina-se igualmente os alunos nesse sentido, retirando-lhes tempo para estudo e exigindo que pensem, escrevam ou interpretem com rapidez, não lhes sendo concedido o tempo humanamente necessário para o fazer, para o bem-fazer. Exemplos flagrantes dessa postura são a sobrecarga horária e os exames, referindo especificamente os do 12.º ano de Português (8 folhas e 16 com critérios de correcção), nos quais se forçam os alunos a ler diferentes textos, normalmente longos, distribuídos por 2 grupos, o primeiro dos quais com 3 partes, e cuja interpretação implica respostas a questões e a escolhas múltiplas, tornando-se estas últimas, pela confusão que geram, verdadeiras ciladas, para além de 2 estruturações de texto, um expositivo que deve ser “breve” e outro de opinião que não deverá ultrapassar as 200 palavras. Tudo em grande variedade, não permitindo a tranquilidade de espírito necessária para uma efectiva ligação ao que se lê; tudo a ser feito com rapidez, como se os actos de ler, de pensar, de analisar e de escrever não requeressem tempo. Não são os exames que são nocivos e antipedagógicos, mas o sistema que assim os elabora. Nunca serão os alunos vítimas de exames, antes vítimas de quem os menospreza, desprezando o seu futuro. O que é a vida senão a experiência de múltiplos exames?
Constata-se que nunca ministro algum da Educação considerou ter cometido erros. Infantilmente, e sem decoro, omitem-nos ou apontam o dedo ao anterior, protegendo-se numa insuportável e peganhenta autocomiseração. Reconsiderou alguma vez João Costa (na verdade, é ele o ministro) recuar no erro que foi a TLEBS, agora “Dicionário Linguístico”, e que tem atormentado professores e alunos e impedido uma salutar compreensão da língua? Tinha pretensamente como intuito a uniformização da nomenclatura gramatical, mas mais não foi que uma obcecada invenção de palavras, extenuantes subdivisões e penosas enumerações classificativas em estéreis descrições. “Livro”, por exemplo, que a gramática morfologicamente classificava como “substantivo comum, masculino do singular”, passou, e apesar da polémica, a “nome comum, masculino do singular”, a que “inovadoramente” se acrescentou “contável, não humano e inanimado”. Só o bom-senso dos professores determinou que se encurtasse a longa enumeração, mas a designação de “substantivo” perdeu-se na famigerada aventura de João Costa.
Tal como em 2003, manteve João Costa a ideia de considerar “tempo perdido” a contextualização de um autor e da sua obra, questionando a esse propósito sobre “qual o interesse de um aluno saber que um escritor nascera em Freixo-de-Espada-à-Cinta?” Muitos serão os escritores, pintores ou compositores que o rebaterão não só através das suas reflexões sobre o sentido da arte, mas também porque o lugar onde nasceram se reflecte substancialmente na sua obra. E penso, a título de exemplo, em Fernando Pessoa, Vergílio Ferreira, Rúben A. ou Tomás de Figueiredo; em Chagall, e na influência de Vitebsk (Bielorrúsia) na sua pintura ou no concerto n.º 2 para violino de Prokofiev cuja história está tão intimamente ligada ao seu lugar de origem. Não será, no entanto, tempo perdido, para João Costa, analisar demoradamente textos “reais” e “funcionais” que povoam os manuais de diferentes anos da disciplina de Português. As crianças do 1.º ciclo não escaparam à má-sorte e também elas (2.º ano) podem demorar uma manhã a olhar pasmadas para um bilhete da CP, preenchendo, sem interesse e penosamente, o que lhes é solicitado: “classe em que se viajou”, “tipo de serviço que permitiu”, “data em que se viajou”, etc., etc.
Encaradas como adultos em miniatura, pede-se a crianças de 7 anos que aprendam teoricamente a “compreender textos”, explicitando-se estratégias que devem ser utilizadas, depois de lerem para si próprias: “Aprendi que devo tentar perceber quais são as consequências das atitudes das personagens no desenvolvimento da história e juntar isso ao conhecimento que tenho daquilo que são comportamentos corretos e incorretos. Depois, dou a minha opinião, argumentando com base nisso.” (sublinhado nosso). A compreensão de um texto exige em primeiro lugar uma leitura minimamente fluente porque só dessa forma pode haver uma aproximação ao que se lê. Compreender pode conduzir a amar e deveria ser esse o objectivo ao acompanhar uma criança na análise de um texto literário. O que de forma alguma acontece com a obcecada e torturante orientação acima transcrita.
O terror do exemplo não fica por aqui porque agora são também as crianças que devem zelar pelos seus direitos e pela sua protecção, num perverso mundo às avessas. Num trabalho sobre o tema e em que se explicitam, dos 54 referidos, 4 artigos da Declaração Universal dos Direitos da Criança (2 – “Tens todos esses direitos seja qual for a tua raça, sexo, língua ou religião. Não importa o país onde nasceste, se tens alguma deficiência, se és rico ou pobre.”; 19 – Protecção contra a violência; 24 – Direito à saúde; 28 – Direito à educação), alunos de 7 anos devem “explicar por palavras suas” o que está escrito no artigo 2 (por isso o pus na íntegra) ou ainda pensar “noutro artigo que considerem estar escrito nesta Declaração”. E porque a avaliação se tornou actualmente uma obsessão, forçando-nos a que nos transformemos num “big brother” para nós próprios, as crianças do 1.º ciclo são igualmente treinadas a olhar-se criticamente e a olhar os outros do mesmo modo. Anteriormente, no Estado Novo, sem pedagogia, dividiam-se as turmas, tragicamente, em filas de “Oiro”, de “Prata”, de “Bronze” e de “Chumbo” – eu experimentei-o; hoje, encharcados em teorias, e com muita, muita (falsa) pedagogia, as crianças auto-avaliam-se com cores: verde (Bom), amarelo (menos bom) e vermelho (negativo) e assim não só os colegas são estigmatizados, como eles próprios se estigmatizam perdendo toda a motivação para ir à escola e dando início ao caminho da perda da auto-estima. É na base da minha recente experiência que o afirmo.
No que diz respeito à Matemática, e entre muitos aspectos que haveria a salientar, relevo a realização de contas, seja de adição, subtracção, multiplicação ou divisão e repito o que, em 2014, disse numa entrevista conduzida por Mário Carneiro, na RTP. Nessa altura, recebi indicações de avós e encarregados de educação, muitos dos quais ex-alunos, que davam conta de que netos e filhos resolviam facilmente as contas, com o método tradicional, mas, com a aplicação de novas estratégias, não conseguiam fazê-las, algumas das quais recorrendo ao sistema da árvore, como acontecia na famigerada Gramática Generativa. Hoje, sou eu própria a constatá-lo e a verificar em muitas crianças essa dificuldade. Esperemos que o novo programa de Matemática, que se prepara, possa respeitar as características específicas de cada nível etário, para bem das crianças do 1.º ciclo e do estudo da Matemática.
Confesso o meu desapontamento perante o que folheio em manuais do 2.º ano, não só de Português (e aproveito para referir a pouca qualidade de muitos textos, ditos literários, usados em manuais), mas também de Estudo do Meio e de Matemática em que sobressaem actividades e estratégias, exigindo um pensar abstracto que as crianças não adquiriram ainda, para além de um vocabulário desadequado à idade. Não será assim que incitaremos os alunos a ler, desenvolvendo um hábito que a vida nos tem mostrado ser imprescindível, seja social seja espiritualmente. Para muitas crianças também, sem acompanhamento dos pais, em casa, e que se defrontam com o inferno da incompreensão do que lêem (os que conseguem minimamente ler), que esperar senão um abandono escolar futuro? Agrava esta situação o verdadeiro maltrato (físico e psicológico) que é o facto de muitas crianças permanecerem na escola um exagerado número de horas, saindo de manhã cedo de casa (a escola recebe-as a partir das 8h00) e regressando, muitas delas, à hora do jantar, já exaustas e incapazes de fazer seja o que for. Onde está a Pedagogia?