Paulo Guinote
Temos assistido nas últimas semanas, nos últimos dias, com alguma intensidade, a diversas primeiras páginas e vários títulos a roçar o sensacionalismo, a uma dupla investida contra a serenidade indispensável para o trabalho das salas de aula das escolas públicas.
Desta vez não são os professores e a sua prolongada divergência com a tutela, mas os especialistas, os estudiosos que surgiram com destaque a anunciar males diversos, que se espalham para a opinião pública como se de verdades definitivas se tratassem.
A primeira investida assentou na ideia de que o caos inundou as salas de aula (a partir do mais recente livro de Maria Filomena Mónica) e levou ao colapso das escolas (diagnóstico de Carlos Fiolhais nas páginas do PÚBLICO). A base empírica destas asserções consiste numa dezena de diários de professoras e algumas alunas do ensino secundário, da zona de Lisboa. O retrato traçado é, não sei se voluntariamente, do tipo catastrófico e agradou bastante a muitos docentes, em especial a um número elevado que se sente espezinhado e esgotado, de um modo especialmente violento, desde há, pelo menos, perto de uma década. Encontraram esses docentes em tal retrato de salas de aula anárquicas, povoadas por alunos irresponsáveis, provocadores e desinteressados das aprendizagens e por professor@s (embora os relatos sejam todos no feminino) desanimad@s e incapazes de manter alguma ordem, um reflexo que consideram algo fiel do seu próprio quotidiano de desânimo e desespero.
Este é um retrato que também agrada muitos a todos aqueles que nos últimos anos têm procurado de forma sistemática apresentar as escolas públicas como uma antecâmara do dantesco inferno, quando não mesmo um dos seus círculos, erguendo como desejável alternativa as celestiais escolas privados do topo dos rankings.
Este é um retrato perigoso, porque traçado em tons excessivos com aparente suporte académico, divulgado de forma sensacionalista, hiperbolizando um cenário de desordem generalizada e ignorando o que de bom e muito bom ainda acontece pelas escolas e salas de aula. Muitos aplaudiram a denúncia, não parecendo preocupados com os efeitos nefastos de uma representação apenas a vermelho e negro do quotidiano escolar.
A outra investida passou pelo regresso, a pretexto de um estudo encomendado pela EPIS a investigadores da Universidade Nova de Lisboa liderados por David Justino (Atlas da Educação – Contextos sociais e locais do sucesso e insucesso), de uma narrativa sobre o insucesso escolar que, a partir de uma análise estatística e seguindo uma lógica economicista, o considera como um desperdício financeiro e uma das áreas onde podem ser feitas poupanças se as escolas abandonarem uma alegada “cultura da retenção”.
O estudo é, felizmente, muito mais do que isso, tem dados muito interessantes ao nível municipal e sublinha acertadamente a necessidade de prevenção do insucesso e não da sua eliminação administrativa, mas o que passou para a opinião pública foi a mensagem do excesso de “chumbos” e o chavão da tal “cultura de retenção” que, de forma implícita, se percebe ser atribuída aos professores, pois nunca se questiona que todas as reformas promovidas pelos sucessivos governantes foram feitas a pensar “nos alunos” e no “sucesso”. O que terá falhado foi a sua implementação a nível local. Isto a par do outro lugar-comum de denunciar a responsabilidade do centralismo pelo falhanço das reformas educativas desenvolvidas ao longo do tempo, apesar de no seu conteúdo o mesmo estudo revelar os enormes avanços conseguidos no combate ao abandono escolar e mesmo ao insucesso.
Eu sei que no Conselho Científico da EPIS estão quatro ex-ministr@s da Educação, três d@s quais cumpriram o seu mandato até ao fim, bem como o estudo é coordenado por outro ex-ministro. No seu conjunto, governaram a pasta da Educação em cerca de 16 dos últimos 27 anos. O director-geral da EPIS é um ex-alto quadro do ministério entre 2004 e 2007. Seria difícil esperar que um objectivo de qualquer estudo solicitado pela organização fosse questionar a bondade das políticas educativas das últimas décadas. É mais fácil falar na “cultura de retenção” das escolas, das falhas a nível local. Em primeira e última instância das práticas de avaliação dos professores. O dedo não é apontado explicitamente, mas não é difícil entender qual será o alvo.
Só que penso ser mais do que tempo para deixar de atirar sempre a responsabilidade para os mesmos e começar a estender a capacidade de auto-crítica e de avaliação a todos os actores na área da Educação, a começar pelo topo da hierarquia e por aqueles que tiveram o poder de mando e decisão. Que aparecem sempre a reclamar a responsabilidade pelos sucessos mas nunca pelo que correu menos bem.
Para quando uma cartografia dos falhanços políticos, visto que em eleições não se sufragam ministros e políticas sectoriais?
Em suma…
Salas de aula caóticas.
Escolas públicas em colapso.
Cultura de retenção, promotora de insucesso.
Desperdício de verbas públicas.
Tudo apresentado por quem se afirma defensor@ de um ensino público de qualidade.
Pela parte que me toca, nem sei como lhes posso agradecer tanto esforço.
(Negrito nosso)
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