1. A primeira critica a fazer à reforma curricular que consubstancia o Decreto 55/2018 é que
não se vislumbra como aí é possível conciliar a autonomia e flexibilidade curriculares com o manifesto deficit democrático do modelo de gestão escola pública. As ideias de coautoria curricular, de empoderamento da escola, particularmente dos professores e dos alunos, está em completa contradição com uma escola hipercentrada no diretor, espécie de buraco negro da democracia escolar. Aliás, prova-o o modo como tudo foi feito. Já a experiência ocorrida no ano anterior resultou das decisões dos diretores e não das opções das escolas. A não ser que se queira identificar as escolas com os diretores. Aliás, essa ideia/ambição é ela mesma sublinhada no Relatório da OCDE de janeiro de 2018, onde se assinala que “os líderes escolares, e em particular os diretores, são responsáveis por uma escola como um todo, desempenhando um papel fundamental na implementação do projeto piloto nas escolas”, ou, de modo, ainda mais claro, que “o papel que esses líderes [os diretores] desempenham dificilmente pode ser exagerado: eles são os principais contribuintes para o desenvolvimento profissional dos professores individuais … eles são os responsáveis pela capacitação da escola como um todo”. Do que aqui se trata é, então, de uma reforma centrada num lógica hierarquizada da escola, a definição mesma de um escola conservadora, ainda que pública. Enquanto o PSD queria acabar com a escola pública, o PS quer uma escola pública conservadora e hierarquizada, pensada à imagem das empresas, capaz de prestar os melhores “serviços” à comunidade, em que os professores são meros proletários operacionais.
2. Mas a segunda questão crítica, que se pretende com a primeira, é que a ideia de autonomia e flexibilidade curricular parece estar diretamente conectada à ideia e prática da municipalização, que vem já do governo anterior (como, aliás, a da própria ideia e prática de flexibilização curricular), e que o atual quer consolidar. Parece, pois, que a autonomia e flexibilidade que se pretendem são aquelas que derivam dos poderes dos diretores e dos municípios. Mais uma vez, aquilo a que se assiste é à criação de um contexto de desprofissionalização, em que os professores contam cada vez menos a não ser como executores de um currículo definido no exterior da escola (des-escolarizando o currículo), ao serviço do território e do contexto locais, transformando a escola e o currículo num produto em competição com outras escolas e outros currículos, outros produtos, no mercado global dos serviços educativos. Neoliberalismo travestido de democratismo, no seu melhor. Mesmo que haja muito quem ainda não deu por ela.
3. A ideia de currículos flexíveis ao serviço de cada contexto, legitimados democraticamente e localmente, parece atraente e até ideia de esquerda. Quanto à democracia, estamos conversados. É só conversa. E a coisa só vai piorar. Quanto à ideia de currículos múltiplos, no limite um por cada escola, como o preconiza a atual reforma (e mais ainda o Despacho n.º 3721/2017, dando autonomia curricular a 100% a um grupo particular de escolas), isso conduziria (conduzirá) à fragmentação do currículo, da ideia de conhecimento e solidariedade coletivos, na onda da privatização da felicidade e exacerbamento dos interesses individuais em detrimento do empenhamento e reconhecimento sociais. Conforme com isso, o resultado será a fragmentação e o estilhaçamento de uma escola e um currículo nacionais (ao arrepio do que se preconiza na Lei de Bases do Sistema Educativo e não se percebendo como se pode compaginar com exames nacionais como, neste caso acertadamente, assinala a OCDE), da ideia de uma escola e um sistema nacional de ensino, parcelando os seus conflitos, diminuindo o alcance do poder dos sindicatos, seccionando os problemas e dificultando a sua perceção e entendimento como problemas nacionais. Tudo coisas progressistas, como se vê…
Como assinala José Contreras Domingo, “Desta forma, o currículo descentralizado e a autonomia das escolas podem ser o local onde os conflitos se diluem ou se reduzem a casos particulares. As diferenças sociais da sociedade em geral não são tão apreciadas em cada escola em particular. Encaradas individualmente, cada uma dessas diferenças pode ser internamente mais homogénea, podendo concretizar o currículo de uma forma aparentemente menos conflituosa. Ou então, pelo contrário, as escolas onde ocorrem conflitos sociais ou ideológicos podem ser em menor quantidade, ficando isoladas do resto do sistema” (“A Autonomia da Classe Docente”, Porto Editora, 2003, p 180).
Mas pode também citar-se José Augusto Pacheco sobre a descentralização e, digo eu, sobre a flexibilidade: “A descentralização enquanto processo de responsabilização das escolas e dos professores, responde, simultaneamente, às necessidades de um Estado forte na seleção, organização e avaliação do conhecimento escolar e de um Estado fraco, na gestão do seu processo de implementação e ainda a uma lógica de mercado, que faz da escola o centro de decisão, delegada para fomentar a competitividade e a meritocracia” (“Políticas Curriculares”, Porto Editora, 2002, p. 115.)
A ideia assenta em que cada escola, sendo uma escola “muito” particular, com um currículo próprio, poderá constituir-se como um produto curricular à venda no mercado, promovendo lógicas de competição e validação pelos resultados, tendo em conta os interesses do mercado que, naturalmente, dificilmente serão os interesses das famílias e dos alunos (e sobretudo das famílias mais pobres). Livre escolha curricular, portanto, das famílias, no mercado da educação.
4. De outro ponto de vista, o assento tónico, nesta reforma, no conceito de “competências” mais que de “conhecimentos”, com a sua panóplia de lógicas e prescrições de “transversalidade”, “interdisciplinaridade”, “projeto”, “DACLs” e outros, parecem apontar para um proselitismo pedagogista e normativo em que o conhecimento disciplinar perde uma parte muito importante do seu valor e, com isso, perde o professor o seu estatuto de especialista disciplinar. Aliás, o proselitismo pedagogista é tal, que até o “Conselho das Escolas” acaba a considerar, em parecer de maio de 2018 sobre a experiência pedagógica da Flexibilidade, que “as Escolas não pretendem um reforço da autonomia e da flexibilidade curricular induzido e prescrito externamente, Consideram, aliás, que as normas operacionais e estratégicas ínsitas … limitam a sua autonomia e impõem-lhes uma burocracia excessiva e desnecessária, prejudicial ao trabalho dos professores e às aprendizagens dos alunos”. Mais claro era impossível…
5. Por último, vale a pena lembrar que não há autonomia profissional e pedagógica sem uma carreira profissional digna. Ora, a incorporação, aparentemente definitiva, da austeridade da direita, na carreira dos professores (por parte deste governo), amputando-lhes mais de seis anos de serviço, tem tudo menos o aspeto da valorização da autonomia dos professores e das escolas. Antes pelo contrário. Assim, se somarmos a falta de democracia nas escolas, a municipalização, a fragmentação curricular e organizacional, a crescente flexibilização dos horários dos professores, crescentemente esmagados no seu tempo pessoal pelas suas próprias escolas, a destruição da carreira docente para uma geração de professores (assim conduzidos à proletarização, desprofissionalização e reformas de miséria, se lá chegarem) ou a diluição crescente do seu estatuto disciplinar, temos um conjunto que não augura nada de bom e que constitui um cocktail neoconservador que, aliás, segue muitas das ideia de Crato (assinale-se que a ideia de flexibilidade curricular em 25% foi justamente inventada por Crato, pela portaria 44/2014). Convém, pois, não confundir os rótulos com as coisas rotuladas, para glosar uma ideia conhecida.
6. Mas não é relevante que os professores respondam à necessidade concretas dos seus alunos e aos contextos, promovendo pedagogias diferenciadas? Sim, é. Mas as escolas e os professores sempre adaptaram e interpretaram os seus currículos; sempre trabalharam em projeto; sempre usaram a interdisciplinaridade e a transversalidade disciplinares como métodos e lógicas de ensino e aprendizagem. Mas nunca perderam de vista que o país é um só, um país pequeno, aliás, que precisa das escolas e dos professores como agentes de ação pedagógica, cultural e política e não como agentes técnicos ao serviço das lógicas de mercado, comunitaristas ou da conjuntura governamental que quer deixar a sua própria reforma curricular marcada na pedra (mesmo que descendendo diretamente do conservadorismo mais Cratino). Não marcará nada, claro. Mas, como de costume, fará os professores andar por aí à nora, que, de tão habituados, acabarão a navegar à bolina, contra o vento mas escolhendo os melhores caminhos, com os seus alunos em vista…