quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Proposta de remodelação do Decreto-Lei nº 3/2008 - Regime Legal de Inclusão Escolar

Regime Legal de Inclusão Escolar

1.º PONTO EM ANÁLISE: CONCEITO DE INCLUSÃO


O conceito de inclusão, melhor dizendo o movimento da inclusão e os princípios que subentende, nasce da premissa de que os alunos com necessidades educativas significativas (NEES) não devem ser excluídos, mas, sim, inseridos (incluídos) nas classes regulares das escolas das suas residências. Contudo, os alunos com NEES, quando inseridos nas classes regulares, devem ter acesso, por direito, a todos os serviços de que necessitem para que lhes seja assegurada uma educação de qualidade (apropriada às suas capacidades e necessidades) que se apoie no princípio da igualdade de oportunidades. Ao traduzirmos, em percentagens, o número de alunos com necessidades educativas especiais (NEE) que frequentam as nossas escolas, chegamos a uma percentagem compreendida entre 10 e 12% da população estudantil. Desses 10 a 12%, cerca de 4 a 6% serão alunos com NEES. Alunos que, na maioria dos casos, necessitam de apoios e programações educacionais individualizadas durante todo o seu percurso escolar. No entanto, é também importante tomar nota de que todos esses alunos têm características, capacidades e necessidades diferentes, podendo, ou não atingir os objetivos do currículo comum (mesmo considerando a flexibilidade curricular proposta por este governo).

Exemplo: Imaginemos que, numa aula de Estudo do Meio, se pretende tratar as divisões administrativas em Portugal, considerando os 18 distritos e as duas regiões autónomas e respetivas capitais. Um aluno com dislexia (ocupar-me-ei da categorização no próximo ponto em análise) severa, eventualmente (com apoio) conseguiria atingir o objetivo, ou seja, conseguiria nomear os 18 distritos, as duas regiões autónomas e respetivas capitais. No entanto, um aluno com dificuldades intelectuais moderadas/severas ou com autismo primário (autismo a que está associada uma dificuldade intelectual moderada a severa) possivelmente não conseguirá nomeá-los. Aqui, o objetivo seria, por exemplo, que ele fosse capaz de nomear o distrito da sua residência (ou região autónoma) e respetiva capital. Mas, quer num caso, quer no outro, ambos os alunos necessitam de acompanhamento individualizado para atingir o objetivo. Mais, se no primeiro caso (dislexia severa) a programação educacional poderá incluir “acomodações” e/ou “adaptações” curriculares, no segundo caso, o currículo poderá ter de ser completamente alterado para que o aluno seja capaz de completar o objetivo e, simultaneamente, sentir-se mais confiante, mesmo que a sua realização se encontre muito abaixo da dos seus colegas.

Este exemplo ilustra bem a complexidade do atendimento a alunos com NEES tendo por base os princípios que regem o movimento da inclusão (conceito de inclusão). Ou seja, um aluno com NEES necessita, na maioria dos casos, de toda uma equipa de apoio, criada a partir das suas capacidades e necessidades, que compreenda a “significância” das diferenças que apresenta (respeitando-as, claro), que o ajude a integrar-se da melhor forma possível na sala de aulas e nos demais ambientes onde ele interage com os seus pares (recreio, educação física, cantina), que apoie o (s) seus (s) professore (s) do ensino regular.

Ora, o que o RLIE diz, no seu preâmbulo é que “a inclusão” (…) “visa responder à diversidade de necessidades de todos os alunos”, repetindo-o, quase da mesma forma, no artigo 1.º, pontos 1 e 2 (Objeto e âmbito). Embora esteja de acordo, na generalidade, este tipo de linguagem não serve os interesses dos alunos com NEES. Como é sabido, este tipo de retórica deu lugar a um conjunto de propostas e práticas educativas totalmente desajustadas às capacidades e necessidades dos alunos com NEES. Fez com que a educação das crianças e adolescentes com NEES ficasse totalmente diluída no mar dos discursos igualitários neoliberais. Tem, de certo modo, provocado mais insucesso do que sucesso no que toca à educação destes alunos. De tal forma que eminentes académicos e investigadores, como é o caso de Mary Warnock, Kauffman, Heward, Hallahan, Hirsch, Gross, Lieberman e tantos outros especialistas, encontraram uma plataforma de acordo sobre esta matéria, afirmando que o conceito de inclusão, tal como é interpretado hoje em dia, só tem causado confusão e desilusão das quais os alunos com NEES são as vítimas. Eu acrescentaria que este tipo de linguagem “politicamente correta” (?), mas “academicamente incorreta”, não só vitimiza os alunos com NEES, mas também os professores e os pais. Neste sentido, a linguagem do RLIE, no que concerne ao conceito de inclusão, parece convergir com tal afirmação.

Parecer: Tendo por base o preâmbulo, objeto e âmbito do RLIE, o documento ora em discussão deve ser revisto no sentido de se constituir como um verdadeiro documento orientador da educação de crianças e adolescentes com NEE. Pelo que ficou dito acima, não parece sê-lo.

Finalizo, chamando a atenção para o facto de que muitos dos países mais avançados nestas matérias possuem legislação que norteia a educação de alunos com NEE. Por exemplo, nos EUA a legislação que consagrou os direitos dos alunos com NEE a uma educação apropriada às suas características, capacidades e necessidades remonta a 1975, com a passagem da “Public Law 94-142”, designada também por “Education for All Handicapped Children Act”. Esta Lei nunca foi revogada, mas sim aditada sucessivas vezes para incluir os resultados da investigação que se ia efetuando ao longo dos anos. Foi assim que, por exemplo, passou a incluir em 2004, embora em regime facultativo e destinado apenas aos alunos com dificuldades de aprendizagem específicas (DAE), um modelo de intervenção (Response-to-intervention, na Lei designado por “RtI statute”) de tipologia muitinível. Contudo, esta Lei, designada desde 1990 por “Individuals Disabilities Education Act” (IDEA), nunca deixou de ser uma Lei orientada para a educação de alunos com NEE, cujo objetivo primeiro é o de assegurar o direito que todos os alunos com NEE têm a uma educação de qualidade, pública e gratuita, desenhada para responder às suas capacidades e necessidades específicas e prepará-los para a sua inserção na sociedade, onde se pretende que eles se tornem adultos produtivos, autossuficientes e independentes.

2.º PONTO EM ANÁLISE: CATEGORIZAÇÃO


Na “Alteração ao Decreto-Lei n.º 3/2008, de 7 de janeiro – Versão para consulta pública” lê-se no seu preâmbulo que se afasta “a concessão de que é necessário categorizar para intervir”[1]. Ora é precisamente esta afirmação que me leva hoje ao 2.º ponto da análise que me propus fazer sobre o documento citado acima.

Como é sabido, em educação, continua a ser muito atual a discussão sobre as vantagens (Ex.: A categorização promove a consciencialização e consequente compreensão da singularidade das dificuldades de um aluno; A categorização leva à intervenção, abrindo portas aos recursos; A categorização reduz ambiguidades, promovendo uma profícua troca de informações entre profissionais de educação e pais; A categorização abre caminho à investigação, ao diálogo entre profissionais de educação e pais no que concerne ao conhecimento sobre diferentes tipos de necessidades educativas especiais/NEE e, ainda, no que respeita à seleção das melhores práticas educativas – estratégias, atividades – para a promoção de sucesso para os alunos com NEE) e desvantagens (Ex.: A categorização pode alterar as expectativas dos professores – comportamentos que esperam que os seus alunos exibam; A categorização pode estimular comportamentos de bulling; A categorização pode fazer baixar a auto estima do aluno) da classificação e consequente categorização no que respeita aos alunos com necessidades especiais.

Por classificação, numa Escola, pode-se considerar o conjunto de alunos sem e com necessidades especiais (NE) cuja subclassificação considera os alunos em risco, os sobredotados e os com NEE. Ao ocuparmo-nos dos alunos com NEE, verificamos que existem pelo menos 13 tipos de situações (categorização) a que importa dar atenção (autismo, surdez, dificuldades intelectuais, perturbações emocionais e do comportamento, dificuldades de aprendizagem específicas, de entre outras).

Tendo por base o que ficou dito acima, verificamos que as vantagens da classificação se prendem com critérios científicos, pedagógicos e sociais (interação entre profissionais de educação, alunos sem e com NEE e pais), ao passo que as desvantagens se prendem com critérios mais do foro da formação/educação cívica (expectativas, preconceitos, bulling, discriminação, que podem afetar a autoestima dos alunos com NEE), levando-me a concluir que ao desconsiderarmos as vantagens estamos a pôr em causa a educação (de qualidade) das crianças e adolescentes com NEE. Quanto às desvantagens, quase todas associadas à forma como nos comportamos perante a diferença, a questão torna-se muito mais uma questão de sensibilização e de educação do que uma questão cientifico-pedagógica, pelo que não será curial desconsiderar a categorização.

Ao eliminarmos a categorização, afirmando que “não será necessária para intervir”, com pretextos, a meu ver neoliberais, estamos, como afirmei, a impedir encontrar uma plataforma comum entre investigadores, profissionais e pais que leve ao entabular de diálogos e experiências que permitam a troca de saberes sobre as particularidades dos vários tipos de NEE e a proposta de práticas educativas promotoras de sucesso. Até porque, como vimos, as desvantagens prendem-se muito mais com fatores que se inserem na esfera da educação (formação) cívica. Deste modo, será que, caso um aluno (ou qualquer outro indivíduo) se dirija a um outro, apelidando-o de “gordo”, “burro”, ou qualquer outro termo injurioso, estes termos devam ser retirados do nosso léxico? Claro que não! O que é preciso, também no caso das desvantagens da categorização de alunos com NEE, é que a preocupação recaia na educação/formação cívica de quem assume tais comportamentos.

Numa palavra, e concordando com tantos e tantos investigadores, académicos, professores, demais profissionais de educação e pais, será de certa forma ilógico falar acerca das capacidades e necessidades especiais dos alunos sem se perceber as suas características específicas (atípicas), a não ser que pretendamos ignorá-las. Assim sendo, a categorização desde que seja apropriada, compreendida e respeitada, transporta consigo um conjunto de informação importante que nos permite elaborar intervenções eficazes e, até, poderá ajudar a reduzir o estigma que tantas vezes acompanha o aluno com NEE.

Prof. Luís de Miranda Correia

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