MUNICIPALIZAR AS ESCOLAS, DESRESPONSABILIZAR O ESTADO
Fazendo tábua rasa da avaliação do processo anterior (ano 2008) foi, recentemente, anunciado pelo governo um novo programa de descentralização das políticas públicas de educação, demagogicamente designado de “Aproximar Educação” . Ora, este processo, que é um dos principais retratos com que 2015 nos presenteia da escola pública, corresponde à municipalização da educação que, com estranheza, surge no momento da história da educação onde o controlo municipal das escolas na Suécia (tido como exemplo europeu) se mostrou um fracasso.
Neste processo de municipalização, e pela primeira vez na complexa história da administração local da
educação, as escolas perdem várias competências próprias e sentem a sua escassa autonomia regredir ainda
mais.
A designada Municipalização das Escolas, corporifica a aclamada descentralização administrativa que é
entendida na Lei n.º 75/2013, artigo 111.º, como um processo concretizável “através da transferência por via
legislativa de competências de órgãos do Estado para órgãos das autarquias locais e das entidades
intermunicipais”. Com o objetivo de aproximar as decisões aos cidadãos, promovendo a coesão territorial, bem
como a “melhoria dos serviços prestados às populações e a racionalização dos recursos disponíveis” (Artigo
112.º), a transferência de competências é assinalada pela Lei como sendo de “caráter definitivo e universal”
(Artigo 114.º).
Com este processo, pretende-se, introduzir no funcionamento das escolas, ao nível administrativo, curricular e
pedagógico, um conjunto de modificações que por via de um Contrato Interadministrativo de Delegação de
Competências (Contrato), onde as escolas não são tidas nem achadas no processo, se desvelam incongruências,
ilegalidades e um total desdenho para com as competências dos Conselhos Gerais, dos diretores e da autonomia
das escolas, aquela que pelo Decreto-Lei n.º 75/2008 de 22 de abril (com as alterações elencadas no DecretoLei
n.º 224/2009, de 11 de setembro e no Decreto-Lei n.º 137/2012, de 2 de julho) institui o regime de
autonomia, administração e gestão das escolas públicas.
Atualmente, foram celebrados 15 Contratos entre o MEC e Municípios, com um custo de 67 milhões de euros,
a saber: Águeda, Amadora, Batalha, Cascais, Crato, Maia, Matosinhos, Mealhada, Óbidos, Oeiras, Oliveira de
Azeméis, Oliveira do Bairro, Sousel, Vila de Rei e Vila Nova de Famalicão. O instrumento jurídico acionado para
este modo impositivo de transferência de responsabilidades é o “Contrato de Educação e Formação Municipal”,
definido como um contrato interadministrativo de delegação de competências que mais não é do que uma
parceria público/público entre o governo e cada um dos municípios escolhidos.
Também a autonomia das escolas é afetada, se atendermos à Portaria n.º 265/2012 alterada pela Portaria n.º
44/2014 sobre os contratos de autonomia celebrados entre o MEC e mais de 250 escolas. O Contrato atropela
toda a dinâmica conquistada, todo o empenho das escolas em prol de uma autonomia construída e pensada em
função do seu contexto, das suas adequações numa relação necessária com a identidade local e nacional.
O Contrato, abrangendo áreas como políticas educativas, administração educativa, gestão e desenvolvimento
do currículo, organização pedagógica e administrativa, gestão de recursos e relação escola/comunidade, incorre
num discurso já longo de mitificação da autonomia das escolas, do seu papel na qualidade do serviço público de
educação, como também, do seu acesso privilegiado às famílias. Se o objetivo deste Contrato, que vem dando
corpo ao Programa “Aproximar Educação” do atual Governo PSD/CDS-PP é a eficiência e eficácia na prestação
do serviço a um nível mais próximo, por que razão não se aprofunda e desenvolve a política educativa dos Contratos de Autonomia e se entrega à Escola Pública as competências que, na área da educação, a tutela quer
ver reconhecidas nas autarquias?
Ao invés de assumir um processo verdadeiramente descentralizador, assistimos a uma “centralização
desconcentrada” da política educativa, onde os municípios se assumem como mais um oficial da justiça social
do Governo, num processo que os compromete sorrateiramente com as metas do Poder Central, ao mesmo
tempo que o desresponsabiliza.
Uma das principais questões que colocam em causa todo este processo, reside no facto desta delegação de
competências abranger não só os domínios tradicionais da intervenção municipal, como também e,
principalmente, áreas e matérias claramente pedagógicas, curriculares, de avaliação, de gestão do pessoal
docente e não docente, de contratação de parte dos docentes, de formação contínua, de estratégias e projetos
de promoção do sucesso educativo, de orientação escolar e profissional, de matrículas, do regime disciplinar
dos alunos e de organização das redes de oferta educativa e formativa, dimensões que deixam de estar sob a
responsabilidade das escolas e agrupamentos ou nas direções gerais (administração central),para passar para a
responsabilidade dos municípios, que as podem ou não voltar a delegar para as primeiras ou para outras
entidades concessionadas para a sua prestação.
Neste enquadramento, deixa de ser da exclusividade da Escola gerir 25% do currículo nacional, tal como
elencado na Portaria n.º 44/2014 de 20 de fevereiro. A gestão flexível do currículo, a partir da Escola, cede, uma
vez mais, o avanço autonómico às autarquias, tal como assinala a Cláusula 6.ª, 2f), objetivos estratégicos, do
Contrato. Se a investigação educacional tem caracterizado a Escola como um serviço periférico do Estado, é
facto que com este Programa, ela não só perde o seu foco pedagógico e didático, como também continua
ausente do debate político que a concebe e reformula.
Da Matriz de Responsabilidades Educativas que se anexa ao Contrato verificamos, por exemplo que no
município de Matosinhos, a elaboração de pareceres e recomendações para a melhoria da educação; a gestão
integrada de recursos técnicos especializados, nomeadamente na área da educação especial; a definição de
critérios para a organização e gestão da rede escolar municipal; a definição de componentes curriculares de
base local, incluindo as ofertas de formação profissional e atividades de complemento; a conceção de medidas
de apoio socioeducativo; a definição das regras de constituição de turmas e o recrutamento de pessoal para
projetos específicos de base local, são da responsabilidade do Município, estando sujeitas a um parecer
obrigatório e vinculativo do Conselho Municipal de Educação (CME). É, neste cenário de municipalização da
educação, que o CME sai reforçado ao nível das suas competências com especial destaque para o facto deste
órgão dever pronunciar-se sobre o Plano Estratégico Educativo Municipal; a participação do município em
projetos e programas educativos e formativos de âmbito intermunicipal; as medidas de promoção do sucesso
escolar e prevenção do abandono escolar precoce, bem como ainda sobre todas as matérias identificadas na
Matriz de Responsabilidades Educativas dependentes do seu parecer (Cláusula 14.º do Contrato).
Ao concordarmos com a existência de um órgão que enquadre o papel do poder local no domínio da educação,
assumimos a posição do Conselho das Escolas, na existência de um Conselho Local de Educação, numa lógica de
Fórum de Cidadania Educativa, com natureza consultiva e reguladora, sem que a Câmara Municipal detenha
uma posição maioritária de votos (Parecer n.º 1/2015 do Conselho das Escolas), o que implicaria alterações ao
modelo atual.
Acresce, ainda, que o anunciado “municipalismo educativo” constituirá, por si só, uma via aberta para a
concorrência desigual e desregulada entre diferentes fornecedores de ofertas educativas e formativas, com base
em padrões de qualidade e continuidade discutíveis, mas comandados pelas regras de um mercado que se
adivinha feroz na procura de públicos e de proveitos. Por outro lado, este processo de descentralização
administrativa não bloqueia a possibilidade das autarquias subconcessionarem a educação pública a agentes
privados, nomeadamente a organização e desenvolvimento das AEC (Atividade de Enriquecimento Curricular).
Neste contexto, ao velho dualismo funcional virá juntar-se, por esta nova via, um dualismo social propício ao
desenvolvimento de um mercado educativo que exacerba os aspetos mais negativos da concorrência entre
distintos fornecedores de educação e formação profissional e, por isso, indutor da competição entre ofertas
públicas geridas por entidades públicas, ofertas públicas geridas por entidades privadas (escolas
concessionadas) e ofertas privadas geridas por entidades privadas (escolas independentes).
Defendemos que a desresponsabilização do Estado para com a educação pública não pode, admitindo um
processo de delegação de competências, colocar em risco a igualdade de oportunidades, de acesso e sucesso
dos nossos alunos, que, pela diversidade dos territórios educativos ficará claramente assinalada. Uma tal
estratégia - característica do neoliberalismo globalizado – prefigura não só o recuo do Estado social face às
garantias constitucionais e o seu fracionamento em subsistemas de qualidade e de públicos diferenciados, mas
também a sua gradual substituição por um Estado com intervenção mínima que se legitima apenas pela
obsessão avaliativa da eficácia e da eficiência das políticas públicas e pela crescente cobrança de impostos.
Na educação, um tal recuo constitui a mais séria ameaça à natureza democrática, igualitária e emancipatória
que o sistema público educativo português conquistou em Abril de 74.
Não faz sentido que a Escola não seja considerada no Contrato e é inconcebível que a sua construção não passe
pelo diálogo aprofundado, crítico e ético, com todos os parceiros educativos e sociais que beneficiariam da
(des)construção de um Projeto Educativo Local verdadeiramente participativo, democrático e pensado com as
pessoas e para as pessoas, capaz de fazer emergir e potenciar as particularidades de cada Local e de cada Escola.
Este processo politiza e partidariza a Escola e o seu Currículo.
Neste cenário, e com a concretização deste
processo, não faz sentido falar em Aproximar a Educação!
Finalmente, quanto à organização interna das Escolas Públicas, os problemas estruturais encontram-se
relacionadas com um hiato entre as estruturas onde ocorre o planeamento pelos professores das atividades
letivas, os Grupos Disciplinares, e as estruturas intermédias, Conselho Pedagógico e Departamentos, que muitas
vezes funcionam em grupo fechado, pois os seus elementos são todos nomeados pelo Diretor (de facto os
coordenadores de Departamento são nomeados depois de eleição de uma lista de 3 nomes por ele
apresentados para serem sufragados, no que constitui, quiçá, o ato mais democrático idealizado por Nuno Crato
no seu consulado).
Os Departamentos revelam-se disfuncionais, pois não é possível ter reuniões produtivas quando em média têm
cerca de 50 elementos, chegando os maiores no país a terem 100, em reuniões de duas horas num anfiteatro.
Sem ser para ser informados e dizer que sim (ou não) ao que é proposto para votação, alguém acredita que se
discuta algo? Por isso têm habitualmente uma reunião no início do ano e outra no final...
Os Conselhos Pedagógicos encontram-se fortemente burocratizados, sem a participação das bases que
deveriam constituir a sua razão de ser, não fluindo a comunicação no interior da Escola, pois muitas vezes se
percebe que os professores não sabem o que neles se discute e as posições que cada um toma.
Aliás, esse desconhecimento em muitas escolas não é, infelizmente, apenas do que se passa naquele órgão, uma
vez que tal se pode repetir quanto ao órgão de gestão estratégica que o Conselho Geral constitui, órgão esse
que elege o Diretor, tantas vezes responsável por formação de listas dentro das escolas que vão servir para
garantir que o cargo seja mesmo dele, conforme ocorreu nos Conselhos Gerais Transitórios que serviram para
que tais eleições tivessem lugar (é preciso salientar que a acontecer o mesmo no país, tal significaria que, para
além de estarmos em presença de caciquismo, elegeríamos uma assembleia que serviria para eleger o
Presidente da República).
Assim, caberá perguntar se uma Escola que não tem transparência e verdadeira democracia interna pode
formar cidadãos democratas e empenhados em discutir o que à vida comunitária diz respeito.
(Pág. 5 a 7)
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