"É um escândalo que o ministério transfira para o ensino privado 160 milhões sem qualquer auditoria"
A Inspecção-Geral de Educação não tem meios para auditar as transferências de 160 milhões de euros do Estado para as escolas privadas, denuncia Mário Pereira, ex-director da DGAE.
O atraso no arranque do ano lectivo resulta de "uma visão do Governo que valoriza mais o sector privado", denuncia Mário Pereira. Um ano depois de se ter demitido do cargo de Director - Geral da Administração Escolar (DGAE) explica, pela primeira vez, o que o levou a sair do cargo , numa entrevista ao Capital Humano do ETV que é emitida hoje às 20h00.
Como se explica esta atraso tão grande no arranque do ano lectivo?
Acho que esse fenómeno resulta da visão deste Governo que valoriza muito mais o sector privado. Há uma desvalorização do ensino público, ao criar turmas de grande dimensão que têm dificuldade em responder aos problemas de formação dos alunos, e ao transferir muitos cursos profissionais para o sector privado. Este governo fez também alterações inéditas ao Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo que passaram despercebidas da opinião pública.
Que alterações foram feitas?
A alteração mais profunda foi a do paralelismo pedagógico. Ou seja, a partir de agora, as escolas privadas passam a ter direito à sua constituição, com paralelismo pedagógico, sem que o Ministério da Educação regule e perceba se têm condições para garantir as aprendizagens que garantam esse paralelismo e coerência e consistências nas classificações atribuídas aos seus alunos, para que todos os alunos a nível nacional estejam em igualdade de circunstâncias nomeadamente, quando as notas são utilizadas para o acesso ao ensino superior.
Mais, através do estatuto o Estado compromete-se a apoiar o acesso das famílias às escolas particulares e cooperativas permitindo progressivamente o acesso àquelas escolas em condições idênticas às das escolas públicas. Aqui esqueceu-se de todas as infraestruturas públicas já existentes, sejam as escolas, docentes e outros técnicos da educação, e que progressivamente tem espaço para acolherem mais alunos em razão da baixa natalidade.
Quanto à direcção pedagógica das escolas particulares são-lhe exigidas qualificações académicas de nível superior e habilitações profissionais adequadas sem se saber o que se entende por isto, enquanto para a direcção das escolas públicas a exigência é maior no que se refere às habilitações para o exercício do cargo. Mas depois os directores pedagógicos podem ser opositores aos concursos das escolas públicas quando o seu perfil e desempenhos não são idênticos aos das escolas públicas.
Um princípio que se reflecte também no reforço orçamental para os estabelecimentos privados no OE 2015?
Sim. O valor é calculado por turma. E repare que há aqui uma questão política do governo. O ensino particular e cooperativo estava na dependência de duas direcções-gerais, na dos estabelecimentos escolares, que definia a sua rede de oferta e no que chamo a 'direcção-geral da pagadoria', que se limita a fazer o pagamento e não tem meios nem competência para fazer o acompanhamento e controlo dessas transferências.
E quem faz esse acompanhamento?
Supostamente deveria ser a Inspecção-Geral de Educação, enquanto entidade com competências na matéria, que também não tem recursos, para a fazer esse acompanhamento.
Na realidade não há qualquer auditoria à transferência dessas verbas?
Pois não. Não conheço. Não há uma verdadeira auditoria a estes sistemas, porque não há recursos para o fazer . O Ministério da Educação não tem recursos e, não tendo recursos, confia.
Há pouco dizia que é um escândalo?
É um escândalo porque estamos a falar de verbas na ordem dos 160 milhões de euros por ano. Quando há estudos que recomendaram que se começasse a fazer um reajustamento da rede privada. O que significa que o Ministério da Educação tem de olhar para este fenómeno com outra seriedade.
Porque é que decidiu sair do cargo de Director Geral da Administração Educativa há um ano?
Decidi sair por causa de uma intervenção do ministro da Educação na Assembleia da República. O senhor ministro da Educação e Ciência nunca me chamou para ser ouvido sobre o que se passou no concurso de colocação de professores nomeadamente, com a bolsa de contratação de escola, no ano passado . Por uma questão de delegação de competências este tema era da responsabilidade do secretário de Estado da Administração Escolar, com quem tive muitas reuniões. O secretário de Estado acompanhou e sabia a dificuldades que DGAE estava a ter ao organizar um concurso, num prazo que nunca se tinha feito. Muitas pessoas da DGAE estavam a trabalhar 24 horas, por dia. O senhor ministro também sabia o que estava a acontecer e visitou uma vez a DGAE a altas horas da noite. Uma visita que revoltou os funcionários porque esta sobrecarga de trabalho, resultava de falta de planeamento político e não de questões técnicas da DGAE.
O ministro conhecia o parecer jurídico que sustentava o caminho tomado na selecção de docentes através da bolsa de contratação de escola. Aliás, reuni com o secretário de Estado para analisar a questão da fórmula, antes desta ser aplicada, e a decisão foi para prosseguirmos tal como as escolas já vinham fazendo nos anos letivos anteriores na contratação de escola.
É a decisão política que gera todo o problema?
É uma decisão política e um director-geral que não tem competência para a contestar.
Nuno Crato disse que havia um erro na formula e responsabilizou a DGAE pelos atrasos nas colocações do ano passado...
Quando o ministro disse isso no parlamento senti-me atingido como director - geral e deixei de ter condições para continuar a liderar uma equipa que durante seis anos deu o melhor e fez um esforço sobre-humano, para que os concursos de colocação acontecessem. Sem gozarem férias com as suas famílias, muitos a trabalhar mais de dez, quinze e quase 24 horas por dia.
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