sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Entre cliques, registos e desespero: o Ministério da Educação adia, sem pudor, a dignidade docente

Ensinar? Só depois de registar, validar, arquivar e sobreviver

O despacho do MECI nada mais faz do que perpetuar uma cultura de controlo e burocracia, ignorando escandalosamente qualquer promessa de desburocratização do trabalho docente, particularmente no 1.º Ciclo do Ensino Básico, onde a pressão letiva já é insuportável, com um calendário que se arrasta até 30 de junho, agravando ainda mais a já gritante insuficiência de professores.

A retórica do “monitorizar de forma rigorosa e próxima a realidade escolar” assemelhar-se-á a mais um eufemismo mal-amanhado para, no fundo, dizer: “Vamos sobrecarregar, ainda mais, quem já vive debaixo de uma avalanche de tarefas administrativas”. Elevar o registo dos sumários à solenidade de um despacho ministerial é uma tragicomédia administrativa que roça o insulto. Exigir ao professor que encontre aí a medida da sua função é tão absurdo como mandar um cirurgião vangloriar-se por ter preenchido corretamente a guia da anestesia, em vez de ter salvo um doente. Estaremos perante (mais) um daqueles rituais kafkianos que afastam o professor daquilo que realmente importa: ensinar.

Atente-se:

- Não há qualquer referência, neste despacho, à redução da papelada, à simplificação de registos ou à eliminação de procedimentos redundantes, como prometido em discursos políticos recentes.

- A cada novo ano letivo, acumulam-se portarias, circulares, minutos e sumários, mas desaparecem as soluções eficazes para a dignificação da atividade docente.

Sumários, cliques e desespero: o 1.º Ciclo no limbo da burocracia ou o sacrifício silenciado dos professores

No 1.º Ciclo, as semanas de trabalho são brutais, sem margem para pausas pedagógicas ou para uma reflexão séria sobre práticas docentes. Os professores enfrentam, não só o maior número de horas letivas, mas também um calendário espremido até ao último dia de junho, sem qualquer equiparação aos restantes ciclos de ensino, perpetuando a ideia absurda de que ensinar os mais pequenos justifica tão frugal exaustão.

O resultado é óbvio: a carência de docentes para este ciclo, ano após ano, como atestam os números do recrutamento para o presente ano letivo.

A sobrecarga administrativa e horária expulsa profissionais, desgasta vocações e, ironicamente, complica ainda mais o acompanhamento pedagógico que tanto se apregoa como prioridade.

Promessas vazias, realidade crua

Seria cómico, não fosse grotesco: o MECI insiste em reforçar o acompanhamento… pela via do registo burocrático, como se a “qualidade educativa” dependesse de cliques no computador e não da ação pedagógica no terreno. Sobre desburocratização, “nada, mesmo nadinha! Tudo como dantes!”, como tão acertadamente se lê no despacho.

O discurso da desburocratização fica guardado para futuras campanhas ou comunicados pomposos.

Na prática: professores presos a ecrãs, à espera que alguém cuide de verdade dos problemas reais da escola pública portuguesa.

O sistema, deste modo, faz do docente um gestor de plataformas e registos, mas esquece-se que ensinar vai muito além de monitorizar ou alinhar o calendário com os caprichos ministeriais. Enquanto a burocracia continuar a ser o verdadeiro currículo oculto das escolas portuguesas, os professores ficarão a marcar passo, entre despachos, circulares e intermináveis plataformas, em vez de poderem realmente fazer aquilo que sabem melhor: ensinar.

Como defende António Nóvoa, em Professores: Imagens do Futuro Presente (2009), a escola não pode estar sobrecarregada com funções alheias ao seu ofício; é urgente que se reafirme a centralidade do ensino e da aprendizagem, responsabilizando a sociedade por aquilo que não cabe aos docentes nem à escola.
Servido em O Banquete por José Manuel Alho

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