Educar para a adversidade
Paulo Guinote
Educar para a adversidade pode parecer um lema pouco apelativo. Mas é indispensável que entendamos a sua extrema necessidade.
"Brucie dreams life's a highway
Too many roads bypass my wayOr they never begin
Innocence comin' to grief
At the hands of life's stinkin' car thief
That's my concept of sin”
(Prefab Sprout, Cars and Girls, 1988)
Já parece mais ou menos consensual que o chamado E@D esteve longe de correr bem. E não foi apenas por causa das desigualdades de acesso às tecnologias, como desde cedo houve quem avisasse. Ou porque tudo foi feito de forma voluntariosa e com recurso aos meios dos professores, num período de emergência durante o qual rapidamente se tornou quase impossível substituir equipamentos ou acessórios que deixassem de funcionar.
A experiência correu mal porque foi desenvolvida em moldes apressados, destinados a satisfazer alguma opinião pública e uma muito activa e vocal opinião publicada (proporcionalmente à sua ignorância sobre matérias educativas nos mais variados planos), começando-se a construir um edifício sem cavar os seus alicerces.
É bem certo que era necessário fazer qualquer coisa e a agenda política recomendava que fosse depressa, mas depois das duas semanas finais do 2º período, poderia ter-se parado para respirar um pouco e tentado encarar as coisas para além do imediato. Claro que agora surge a justificação que se fez o possível, que é fácil criticar a posteriori e que todos deveriam ter colaborado nas soluções. Mas isso não é verdade. Porque, nas discussões que se geraram em variados grupos, apenas se admitiam variantes ao mesmo caminho definido pelos políticos de forma demagógica: “ninguém está de férias” (Tiago Brandão Rodrigues), “vai prosseguir o processo de aprendizagem até ao final do ano letivo” (António Costa) e foram muito rápidos a desmentir a notícia do Expresso de que a avaliação do 2º período seria, no essencial, a final.
O que faltou?
A calma e a visão para encarar o 3º período como uma etapa de preparação de todos os envolvidos (alunos, docentes, pessoal não docente) para lidar com uma situação de adversidade que poderá vir a prologar-se ou a repetir-se no próximo ano lectivo. Em especial no Ensino Básico, a prioridade deveria ser a realização de um diagnóstico alargado da situação das comunidades educativas quanto ao acesso a meios tecnológicos, algo que foi sendo feito pelos directores de turma, mas nem sempre de modo sistemático. E depois passar para a preparação de todos os envolvidos para um ensino remoto, seja em termos de plataformas e outras ferramentas, seja mesmo em termos de gestão emocional da situação.
Porque se há uma falha evidente na “filosofia” actual que domina o nosso sistema educativo é desajustamento entre uma ideologia baseada num desmesurado optimismo e uma crença no progresso das sociedades humanas, que está em claro contra-ciclo com a realidade que se tem vivido nas últimas décadas. O século XXI, até ao momento, se trouxe alguns ganhos no combate à pobreza extrema em algumas zonas do mundo, não se tem revelado especialmente favorável no combate às desigualdades económicas, à justiça social ou à estabilização das condições laborais da maioria da população das economias consideradas “desenvolvidas”.
O nosso tão aclamado “Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória” é um documento ambicioso na enunciação de tudo o que se acha que os indivíduos devem desenvolver para serem cidadãos de uma sociedade mais justa, sustentável, inclusiva, humanista e tolerante, mas pouco ou nada tem acerca do modo como se deve lidar com a adversidade. Porque não chega ser-se flexível, crítico ou reflexivo, se isso é envolvido por uma retórica que dá a entender que tudo será um caminho para a felicidade e o bem-estar. Porque pouco ou nada se contempla quanto a reagir a situações negativas, de emergência, de crise global, como as que a maioria do mundo enfrentou já por duas vezes desde a viragem para o século XXI.
Não chega criar tutoriais sobre como criar rotinas, como organizar a carga de trabalho, como gerir as emoções num contexto de crise. É necessário que se consolide esse trabalho, algo que não se faz em uma ou duas semanas, em particular com as crianças mais novas (pré. 1.º ciclo e mesmo 2.º ciclo). Há quem consiga, mas não será a regra. É importante que tentemos deixar – realmente – o mínimo de alunos para trás, não assumindo que a “nossa” experiência, por ter corrido bem, se pode replicar em todos os contextos. Porque há sempre pessoas a quem tudo correu bem, que tiveram a arte para mobilizar todos os seus alunos e a técnica adequada para desenvolver com sucesso as suas actividades. E que massacram os outros com aquela atitude que tanto afirmam ser inadequada em outras situações.
Mas voltando ao essencial… há uma lacuna enorme nas nossas teorizações inter/trans/multidisciplinares que é a coragem de assumir que nem tudo vai necessariamente acabar bem se não trabalharmos para isso ou nos prepararmos para o pior.
Há um enfoque sistemático em educar de forma “positiva”, assumindo que a “felicidade” e o “sucesso” estão garantidos se fizermos tudo aquilo que nos dizem ser o certo. Mas a vida não é assim e o facto de se descurar a prevenção do que pode correr mal deixa muitos indivíduos vulneráveis, com níveis elevados de frustração, cada vez mais jovens. Porque não foram preparados para que as coisas corram mesmo mal. A uma escala que vai para além da “negativa” ou do ocasional “chumbo”. Há problemas muito mais graves do que esses.
Educar para a adversidade pode parecer um lema pouco apelativo.
Mas é indispensável que entendamos a sua extrema necessidade.
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