O Banco de Portugal acaba de noticiar (JN de 23/8/2012) que os salários reais em Portugal têm de baixar mais 10%, sobre o que já baixam desde há dois anos. Ao invés, os impostos aumentam de uma forma absolutamente desmesurada, a energia paga-se a preços de autêntico disparate, os bens de primeira necessidade estão em preços descontrolados. Por outro lado os serviços públicos reduzem a sua oferta aos cidadãos e começamos a perceber que a qualidade dos que restam será fortemente afetada.
Quer dizer que o poder de compra real dos portugueses está a regredir para níveis que envergonham a democracia e, por conseguinte, a nossa capacidade de a construir. Estamos num processo de “desconstrução” da vida pública, económica, social e naturalmente política.
Mas o que é que aconteceu ao nosso “jardim à beira-mar plantado”? Somos apenas cerca de dez milhões de habitantes (menos de metade de uma só cidade brasileira ou americana, menos de 1/3 de uma só cidade chinesa ou japonesa), num território simpático, bem posicionado no globo, sem extremos nem catástrofes… como é possível continuar a comprovar ao fim de quase 2 milénios o que dizia o escritor latino, de que somos um “… povo que não se sabe governar…” (E utilizo só esta parte da frase, porque a outra parte já não é verdade: efetivamente já nos deixamos governar).
No mundo globalizado, não somos nem podemos ser uma ilha. Mas ninguém tem dúvidas de que poderíamos ser autossuficientes (Produzir recursos suficientes para toda a população e exceder em alguns para comprarmos o que não produzimos), e ter uma vida boa. Então porque não temos? Genericamente por duas grandes razões: uma interna e outra externa.
Internamente porque deixámos cair finalmente o nosso antigo e reconhecido espírito de “não nos deixarmos governar”. Entregámos de bandeja nem se sabe a quem, a condução dos nossos destinos. Fomos demasiado condescendentes: com a economia internacional, com os senhores da energia que nos convenceram que faziam mais barato que o vento que aqui sopra, com os senhores do dinheiro. Já não temos governo no Governo, nem o governo governa coisa nenhuma: é governado!
Sem dúvida que tínhamos de entrar na Europa da União. Nunca vivemos tão bem e confortavelmente como nestes últimos anos, temos de o reconhecer. Mas não soubemos nem preparar-nos para o reverso da medalha, nem solidificar o bem que de bandeja nos trouxeram a casa. E como “não há almoços grátis” e não nos preparámos convenientemente para o jantar, que já não é grátis, fomos apanhados na nossa ingenuidade.
A Alemanha e os países mais ricos da Europa foram pagando em subsídios para deixarmos de produzir. De facto não nos deram dinheiro, emprestaram-nos apenas, porque ao não produzirmos, tivemos de comprar para viver. A quem? A eles… e o dinheiro retornou lá. Mas com isso tornámo-nos dependentes. E agora? Perdemos a nossa autossubsistência, perdemos a nossa liberdade!
Mas este até é um problema regional. Problema maior é que os senhores que detém o dinheiro do mundo, e esses não têm nacionalidade (o próprio mundo é pequeno para eles), perceberam que um nível de vida mais elevado para mais gente, comporta para eles dois grandes problemas:
O primeiro é que a ascensão de uma classe média (como aconteceu com a burguesia que fez declinar a nobreza feudal) estável e sólida, comporta o risco real de alguns deles passarem à classe dos ricos e terem de partilhar a riqueza com mais esses ou, em situação extrema, muitos deles passarem para a classe rica colocando definitivamente em risco as suas posições de poder, deixam de ser dominantes, porque o dinheiro fica muito mais distribuído. Ora isso será o fim do domínio, e morre o fundamento neoliberal que ideologicamente sustenta este sistema injusto do mundo.
O segundo tem a ver com o valor do trabalho. Todos sabemos que verdadeiramente só há duas formas de gerar riqueza: O trabalho e a detenção de recursos naturais. Todo o enriquecimento deriva destes dois valores fundamentais, e sobretudo do primeiro. Nas sociedades mais desenvolvidas, o valor do trabalho (pela melhor consciência do justo valor e pela dignificação dos direitos humanos), começou no pós guerra a elevar-se, como se elevou o nível de vida das pessoas. Este sistema conduziu de facto, quase generalizadamente, a uma melhoria das condições económicas nestes países, e a concertação social foi conseguindo impor-se nos sistemas jurídicos, protegendo os direitos dos trabalhadores. O trabalho especializou-se de uma forma espantosa, mas o seu custo elevou-se a níveis perigosos para os detentores do dinheiro, baixando o seu lucro. Especularam vendendo conforto aos trabalhadores a preços que não podiam pagar, mas facilitando-lhe tudo para depois lhe fazerem desmoronar a vida. Fizeram isso também aos estados, tirando-lhe poder e fazendo-os claudicar, através das famigeradas “agências de rating”. Agora dominam-nos. E mesmo os estados fortes acabam prostrados perante os senhores do dinheiro, que não têm pátria nem fronteiras, nem lei.
Chamam a estes momentos “reajustamentos económicos”. Pois é, mas em que resultam?
Vejamos: Retiram dinheiro à chamada classe média. Os estados empobreceram e enchem os cidadãos de impostos que retiram ainda mais dinheiro. Fragilizam as economias locais, criando desemprego. Baixam salários, por conseguinte baixam o valor do trabalho.
Creio que aí estará atingido o objetivo dos donos do dinheiro e do poder: mais poder; mais lucro. À custa de quê? “Nova escravatura” e perda de soberania dos estados. Ou seja, como na física “na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”, também na economia nada se perde, nada se cria, tudo se transforma: vão aos estados buscar o poder que conseguem reduzir-lhe; vão ao trabalho buscar o lucro com o que conseguem reduzir nos salários e aumentar em número de horas de trabalho.
O desemprego que chega a números de desespero, leva a que as pessoas aceitem qualquer trabalho a qualquer preço para sobreviverem. A isso chama-se escravatura. Estas crises são cíclicas, promovem “ajustamentos da economia” sempre no sentido do lucro e do domínio do poder.
(Agosto 2012)
Sugestão de leitura:
Tony Judt, Tratado sobre os nossos actuais descontentamentos, Ed 70, Lisboa. 2012