Flexibilidade: verdadeiro modo de usar
Paulo Guinote - Educare
Um ambiente em que não se sabe a que momento se pode ir para casa, individualmente, em grupo ou colectivamente, nem que ferramentas será possível usar de modo a alcançar o maior número de alunos, em que as promessas governamentais de um Plano de Transição Digital ainda não passaram das negociações com operadoras de modo a que todas fiquem felizes, é um ambiente em que se é “flexível”, quer se queira ou não.
A “flexibilidade” é um dos pilares da trindade (com a “autonomia” e a “inclusão”) que o actual poder na Educação ergueu perante todos nós para pública adoração colectiva, apresentando-a como a solução para todas as disfunções e “inconseguimentos” do nosso sistema educativo.
Multiplicaram-se (e ainda se multiplicam) as formações replicadas de uma matriz colhida em obras e autores das últimas décadas do século XX. O que, por si só, não é defeito, mas apenas uma visão muito nascida do seu contexto, com boas potencialidades, mas que não foi concebida para os tempos em que vivemos. Que estão a colocar à prova quase todas as teorizações e previsões acerca do que se imaginava que o século XXI seria. Porque foram pensadas para contextos de estabilidade, mesmo quando se afirmava que os tempos eram de “incerteza” ou “insegurança”. Mas estava-se a pensar em toda uma outra coisa.
Mesmo nas mais extremas excitações de antecipação tecnológica – as que se distinguem por repetir muito lugares-comuns como “esta escola já não serve”, “a escola que temos ainda é a do século XIX” ou “é necessário um novo paradigma” - não se previu que poderíamos, em poucos meses ou até semanas, ver toda e qualquer segurança ameaçada e ter de adaptar todo o modelo de ensino (velho ou novo) a um contexto de pandemia, inicialmente com encerramento de escolas e em seguida com uma espécie de manta de retalhos, em que, entre quarentenas, isolamentos e afins, há professores, alunos ou turmas em casa, por dias ou semanas, sendo necessário repensar toda a forma de assegurar as aprendizagens, de proximidade ou à distância, tornando irrelevantes obsessões algo fetichistas de planificações a médio ou longo prazo ou descritores de desempenho.
Um ambiente em que não se sabe a que momento se pode ir para casa, individualmente, em grupo ou colectivamente, nem que ferramentas será possível usar de modo a alcançar o maior número de alunos, em que as promessas governamentais de um Plano de Transição Digital ainda não passaram das negociações com operadoras de modo a que todas fiquem felizes, é um ambiente em que se é “flexível”, quer se queira ou não.
Repare-se que mesmo a decisão de fazer duas “pontes” nos feriados do início de Dezembro tem implicações práticas nas actividades planeadas pelos docentes. Que não podem ficar agarrados a modelos (arcaicos ou futurísticos) que assentem em dogmas e fés inabaláveis como é o caso do texto fundador a que chamaram “Perfil”, como se estivesse gravado em pedra em verbo Divino.
Os professores estão a enfrentar um desafio que ninguém previu, nem as mentes mais iluminadas em todas as suas conceptualizações do que seria “o ensino no século XXI”; nem sequer as daqueles que em Março achavam que tudo iria terminar em bem, só porque assim eles achavam; ou as dos que anunciaram um Setembro em alegre desconfinamento. Estavam errados, nuns casos por ser mesmo impossível prever a realidade na sua imensa diversidade, em outros porque se agarraram às suas crenças como se fossem as únicas possíveis de conceber.
Os professores estão, todos os dias, a enfrentar a necessidade de “flexibilizarem” a que nenhuma formação por encomenda dá resposta cabal. Porque grande parte dessas formações são a antítese de “flexibilidade”, pois cristalizaram nas suas fórmulas.
Estes são tempos em que a flexibilidade é redefinida todos os dias. No terreno.
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