terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Há certamente outros caminhos para renovar a escola

A Organização Escolar em Tempo de Pandemia - “Ver Para Além da Montanha”
José Matias Alves
Sonhar um sonho impossível
Lutar, onde é fácil ceder
Vencer, o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
Romper a incabível prisão
Voar, no limite improvável
Tocar o inacessível chão!
É minha lei, é minha questão.
Guiar este mundo, cravar este chão.
Chico Buarque

Não era possível prolongar a prisão domiciliária. Era inevitável o regresso a uma escola presencial. O direito à educação das crianças e dos jovens a isso obrigava. Mas deveria ter sido evitado o regresso a uma escola fabril, a espaços sobrelotados, a um currículo excessivo e enciclopedista, a uma ordem sobredeterminada pela obsessão do controlo, das distâncias [não raras vezes impossíveis de cumprir], a um clima asfixiante que tende a arruinar a esperança de aprendizagens mais justas, mais eficazes e equitativas. Como AQUI escrevi já, é imperativo a invenção e a prática de outras formas de organização.

As práticas de escolarização em tempo de pandemia deveriam obrigatoriamente considerar as disposições seguintes:

1. Uma escola muito mais aberta que se cumpre para além das paredes das salas de aula, dos muros, das grelhas horárias e dos muitos confinamentos impostos no interior da escola física. Uma escola aberta teria de se realizar nos museus, nos auditórios, nas hortas e nas quintas do território. Com referia a profª Ana Paula, os alunos deveriam ser incentivados a sair, a observar, ruas, praças, espaços públicos e ver com olhos de ver a vida nas suas múltiplas formas e feitios.

2. Um currículo formal muito mais magro e limitado ao essencial. De notar que neste essencial estão as artes, as tecnologias, as atividades físicas e desportivas e lógicas interdisciplinares integrativas e globalizantes. Vivemos sempre numa lógica acumulativa, (numa conceção bancárias, como diria Paulo Freire) acrescentando sempre conteúdos, “matérias”, disciplinas, de modo a encher (e a prolongar) todo o tempo semanal que ultrapassa as 30 horas. E a questão tem sido sempre “o que ensinar” na escola e praticamente nunca é, “hoje, o que é que já faz sentido ensinar? O que é que pode ser dispensável? O que é pura perda de tempo?

Esta obsessão de “dar a matéria”, de encher a cabeça dos miúdos de imensa tralha inútil é, provavelmente, um dos maiores problemas do sistema formal de ensino.

3. Um currículo muito mais articulado e integrado, planeado, gerido e avaliado por equipas docentes, abandonando o “currículo único pronto a vestir”, desconetado, de formato e imposição universal e possibilitando aprendizagens singulares e diversas. Este caminho, iniciado com o processo da autonomia e flexibilidade curricular, deveria ir muito mais longe, combatendo a visão “monista da inteligência”, “de um ensino esmigalhado”, perdido num sem número de minudências logo esquecidas porque inúteis. Mas esta possibilidade implica uma quase revolução organizacional. Os tempos de docência e de discência teriam de ser outros e o planeamento da ação teria de ser pensado fora das quadriculas das turmas, das horas, das salas, das tecnologias de elevada compartimentação.

4. Um menor tempo de aulas e um maior tempo de aprendizagem plural em múltiplos espaços tempos e interlocutores. No cenário que se esboça, o paradigma da ação teria muito menos aulas, mas duplicar-se-ia o tempo das aprendizagens individuais, grupais, colegiais, territoriais. Cada quinzena seria organizada sob a forma de projetos de ação e de intervenção, dentro e fora da escola, com o contributo de todas as disciplinas curriculares.

5. Grupos de alunos muito mais pequenos, de geometrias variáveis, possíveis pelo efeito conjugado da redução do currículo formal e pela gestão autónoma das equipas educativas que teria o poder deliberativo sobre o onde, o quando, o como fazer aprender. A chave da metamorfose passaria necessariamente por aqui. E isto instauraria uma radical forma outra de viver a escola e a aprendizagem.

6. Um trabalho docente muito mais colegial e colaborativo no planeamento e gestão do currículo, com larga autonomia para gerir tempos globais e garantir as aprendizagens necessárias e que poderia suprir eventuais ausências individuais dos colegas docentes. Uma forma de concretizar esta possibilidade foi, por exemplo, ensaiada, no agrupamento de escolas Óbidos, no 1º e 2º ciclos do ensino básico, e os leitores mais interessados em ver a concretização de utopias podem ver AQUI um registo elucidativo.

7. Adoção de um regime de aprendizagem misto, com recurso a sessões presenciais e a sessões síncronas online [e também assíncronas] que poderiam desenvolver dinâmicas de complemento e enriquecimento [a combinatória temporal poderia variar face aos contextos específicos]. A adoção de um regime desta natureza libertaria os alunos da presença física na escola durante, pelo menos, mais uma manhã/tarde. E ativaria uma pluralidade de centros locais de aprendizagem que foram sendo obrigados a desaparecer pelo efeito de uma ideologia panótica da escola total(itária) que dispensa todos os outros agentes culturais e sociais.

Há certamente outros caminhos para renovar a escola. Mas o que está em curso seguindo o arquétipo fabril levado agora ao absurdo do confinamento interior vai certamente colapsar. E ninguém gostaria de ter de voltar compulsivamente à prisão doméstica. Precisamos de uma escola mais leve, mais solta, mais inscrita no território. Precisamos de uma escola que possa viver com prudência, convivialidade, liberdade e responsabilidade. As portas são estreitas. Mas têm de ser ousadamente (diria quase desesperadamente) procuradas.

Sem comentários:

Enviar um comentário