O meu dia começou ainda de noite quando abandonei a cama, abandonei a família e deixei a minha terra para trás, trocando-os pela estrada, essa amante indesejada com a qual passo grande parte da minha vida.
Levantei-me de noite antes do pequeno ponteiro do relógio chegar ao sexto algarismo, regressando a casa de noite a quatro horas do dia falecer e, com ele, morrer também mais uma parte de mim. Uma noite que me fala do sol arrancado dos meus dias consome-me na frustração de este ter sido mais um de tantos dias em que cedi a minha vida familiar em favor da profissional, em favor de um bem maior comum cujo sentido já tenho dificuldade em conseguir compreender.
O trabalho parasitário hospedado em mim que trouxe para casa e me mantém ligado à máquina, suga a míngua de tempo para estar com a minha família.
Retornei à minha morada, mas foi como se não tivesse voltado, porque à minha mente ainda não foi concedida a oportunidade de regressar a casa. Ficou algures retida em mais burocracia, mais mudanças no sistema, mais indisciplina, mais alunos por turma, mais responsabilidade, mais vidas problemáticas para carregar, mais exigência, mais precariedade, mais cansaço, mais desmotivação, mais desesperança. Uma profissão com um crescente risco e de desgaste rápido que está a deixar em bournout os professores e as nossas famílias.
Já este dia não tinha salvação arrastando-se em estado de coma para o seu epílogo quando, pensando que não poderia ser pior, ao ligar a tela falante, depressa senti que o pior ainda estava para vir. Pela boca de tantos especialistas de vão de escada que se revezavam na arte de desbocar, foram-me cuspidas na cara insinuações de que faço parte de uma casta privilegiada cheia de direitos, que trabalha pouco, ganha muito e tem poder reivindicativo para conseguir sempre o que quer. É curioso, pois ainda não me devolveram nada, mas, pelo que dizem, já nos deram muito. E não foi com surpresa que constatei que em todos os canais um coro ensaiado cantava em uníssono uma inquisitória opereta trágico-cómica de escárnio e maledicência gratuita apetrechada de mentiras, trazendo ao de cima o pior que há nosso povo.
Apresso-me a agarrar ao telecomando como a uma tábua de salvação e esmago desesperadamente o botão para expulsar de minha casa aquele acervo de esbirros que urram palavras de ódio, para que não se desmorone a última réstia de sanidade e ânimo de que tanto necessito para conseguir voltar a enfrentar um novo dia.
Dou comigo a pensar acerca daquilo que sabe, afinal, toda esta gente sobre a minha vida?
O que percebem eles dos sacrifícios que tenho de passar para ter pão na mesa?
O que conhecem da avaliação para dizerem que progrido de modo automático numa carreira onde todos chegam ao topo?
O que sabem eles para poderem afirmar que somos bem pagos, quando um professor no topo da carreira, ao fim de uma vida de trabalho, aufere o mesmo que um juiz em início de vida profissional?
Disseminam alarvidades fecundando as mentes desinformadas, falando do que não sabem sem que os verdadeiros conhecedores, os docentes, tenham tempo de antena com direito ao contraditório para desmascarar todo este circo de difamação que está montado contra si.
Ao fim dos longos dias de trabalho, nas últimas semanas à sexta e ao sábado tenho regressado a casa a horas proibitivas, não por estar a aproveitar essas tais regalias de que falam, mas por ter de encontrar energias onde as não há para frequentar formação a mais de meia centena de quilómetros de casa. Isto enquanto grande parte da sociedade tem tempo suficiente de ócio para poder ajuizar sobre os labores docentes imputando-nos o benefício de uma progressão automática inexistente sem qualquer mérito ou esforço. Uma dúzia de anos no mesmo escalão são o testemunho dessa tal vertiginosa subida na carreira que desconheço. Os 25 anos de serviço no quadro permanecendo apenas no 3º escalão com a certeza de nunca vir a poder chegar ao topo, é uma realidade que não lhes interessa divulgar.
Creio que a obrigação em obter a classificação de “Bom”, as aulas assistidas da avaliação externa, as míseras cotas para acesso ao 5º e 7º escalões e a formação contínua certificada que anualmente tenho de fazer para poder almejar progredir na carreira, na oratória tornada pública, nada são, senão as afamadas regalias de que tanto falam.
Efetivamente, faço mesmo parte de uma casta à parte que não foge aos impostos, consegue um posto de trabalho através de concursos transparentes e não por cunhas e tem de se esforçar para poder progredir na carreira. Não sou como alguns que sobem rapidamente nas suas carreiras por serem apadrinhados, sequazes ou familiares de algum prócer. Façam-me um grande favor, não me confundam convosco!
Uma notável plêiade de ignorantes comentadores, políticos e jornalistas mal informados que prostituem a sua conduta ética por um oco sensacionalismo populista, têm o aparelho de propaganda ao seu dispor para poderem invadir a minha privacidade e me caluniar. Ofenderem-me pelo simples motivo de diariamente me esforçar para cumprir com as minhas obrigações o melhor que sei e as minhas forças me permitem na tarefa de educar os filhos dos outros preparando o futuro da nação. Insultarem-me, ora vejam só, pelo simples motivo de ser professor. Um professor que tem sido roubado e ofendido por todos aqueles que nunca me viram nem conhecem o meu trabalho; por todos aqueles que não entram numa escola há anos e falam do que desconhecem.
Outros países há onde os altos dirigentes da nação dirigem-se publicamente aos professores para lhes agradecer o seu trabalho, mas por cá a gratidão é embrulhada em insultos. Infelizmente, matilhas raivosas absorvidas na ruina moral de uma atitude persecutória aos professores, é o que temos.
Não bastando tudo o que já nos fizeram e de nós disseram, agora viram em nós uma oportunidade para tirar proveito. Habilmente orquestraram uma campanha de descredibilização baseada em razões inverosímeis, lançando no ar a semente da discórdia e os corrosivos sentimentos de inveja e desprezo que cegam as pessoas. Passámos a ser uma mera arma de arremesso e aproveitamento político explorada até à exaustão por inúteis bem pagos e uma comunicação social sedenta de sangue.
Mentem dizendo que queremos retroativos. Não é verdade. Não queremos nem nunca dissemos pretender esse dinheiro, pois a cedência desses proventos foram o nosso contributo para que o país superasse a crise causada pelos abusos e desmandos de outros que não nós. Mas dizerem-me que o meu trabalho e sacrifício não contam é que não posso aceitar. Trabalhei, fiz os descontos, sacrifiquei a minha vida pessoal durante perto de uma década cumprindo com o meu dever profissional. Perguntem à minha família se para ela esse tempo não contou para nada, se não lhe custou prescindir de mim no período que dediquei à escola e ao ensino.
Numa atitude de grande responsabilidade os professores dispuseram-se a negociar modos alternativos e um prazo muito alargado de contabilização do tempo em que trabalharam, mas táticas sub-reptícias revelaram que, independentemente da força da razão, valores mais altos e pouco claros se opuseram a que os motivos dos professores pudessem ser ouvidos.
Porém, o mais curioso é o facto de o momento ser o mais propício para usar os professores para desviar as atenções de toda a corrupção, incompetência, favorecimentos e escândalos de tachos políticos e familiares, ajudas de custo de falsas moradas, de deslocações fictícias, subvenções, frotas, motoristas e todo um conjunto de mordomias que são um insulto para quem trabalha honestamente. Mas, pelos vistos, são os professores que são indignos porque, neste nosso cantinho da europa, respeitáveis são apenas os impunes que sem parcimónia nem vergonha na cara saquearam o país levando-o quase à falência e deixaram a conta para todos nós pagarmos e as culpas na classe docente.
Suponho que se esses pedantes que padecem dessa verborragia estéril que enchem os media soubessem o que é sair da sua zona de conforto e ter de percorrer o país para poder trabalhar, não teriam tanto ímpeto em falar daquilo que ignoram. Onde estão as ajudas de custo, de deslocação e alojamento que tantas outras classes recebem, os políticos se banqueteiam e de que ninguém mais do que os professores, com uma eterna vida itinerante, precisam e a que não têm direito? Onde está o pagamento de tantas horas extraordinárias que os professores são obrigados a cumprir para que o sistema de ensino funcione?
Pobre povo este que, em lugar de valorizar os seus professores, lhes agradece deleitando-se na injúria e ingratidão!
E onde está o presidente de todos os portugueses (menos dos professores) que se mantém calado? Um presidente que fala sobre tudo e sobre nada, tem tempo para telefonar a apresentadoras de televisão, para ir a banhos, para tirar selfies com gente pouco recomendável, mas não tem tempo para dizer uma palavra sobre os professores!
Em todo o caso, ao fim de mais um dia que se prolongou até ao infinito, mesmo voltando muito tarde, eu ainda consegui regressar a casa, porque muitos outros colegas de profissão não o puderam fazer e ficaram longe dos seus, aprisionados em quartos de amargura esquecidos um pouco por toda a parte.
Embora ciente de que a verdade é uma coisa que, nos dias que correm, ninguém quer ouvir e de que estas palavras nunca terão eco, porque não abrem noticiários, nem vendem jornais, permiti-me proferi-las para me conseguir desfazer desta inquietude que me corroía por dentro. Nada mais sou do que apenas um de inúmeros professores sepultados num dos muitos lugares abandonados deste país, comummente chamados de escolas, cujas realidades poucos conhecem.
Apesar da autoridade que nos tiraram e do respeito que nos roubaram, tenho o orgulho de dizer que sou um de tantos que ainda têm a coragem de serem professores em Portugal.
Um dia, quiçá, nos venham a reconhecer o nosso valor, mas, infelizmente, hoje ainda não foi esse dia… um dia cuja chegada se afigura cada vez mais longe para quem sente na pele com suor e olhos marejados os dolorosos privilégios de ser um professor em Portugal.
Carlos Santos