Santana Castilho
1. Em nome de uma obsessiva protecção sanitária, sob o seu próprio e colaborante consentimento, reconheça-se, o cidadão comum foi, primeiro pelo “estado de emergência”, depois pela “situação de calamidade”, simplesmente afastado das decisões que lhe invadiram a vida, nos detalhes mais ínfimos, até nas suas próprias relações pessoais. Fomos voluntariamente prisioneiros das determinações do Governo, que foi por sua vez prisioneiro das determinações de Costa e Marcelo. Da democracia restou o nome, que perdeu a alma quando atirou milhares para a valeta social do desemprego, do lay-off e do trabalho sem direitos, para alimentar uma conveniente pandemia do medo.
Do confinamento prudente (que as chocantes imagens de Itália apressaram), visando precaver o eventual colapso dos hospitais, passámos para um confinamento imprudente, que fez colapsar a vida. Tudo sem debate, tudo recuperando a TINA (There Is No Alternative) de má memória. O terceiro poder totalitário de que falou Jean Ziegler (Les Nouveaux Maîtres du Monde, 2002) é agora o medo propalado em mantras televisivos constantes, que reduziram a vida do país à COVID-19 e que não dão voz aos especialistas que consideram epidemiologicamente insensatas muitas das medidas tomadas.
Até a própria designação de “afastamento social”, para um óbvio afastamento físico, foi um acto falhado. Porque o que se pretendeu foi uma nova ordem excludente, foi o isolamento, a diminuição da sociabilidade, do encontro cara a cara, que alimentaria as emoções e dificultaria a captura das pessoas pela lógica do virtual, da automação e da robotização do trabalho e do ensino.
2. A aplicação dos fundos que aí virão suporia um debate participado e a audição das instituições mais qualificadas em cada área. Em vez disso, António Costa preferiu retomar o despotismo esclarecido, escolhendo em segredo Costa e Silva. Não está em causa a pessoa de Costa e Silva, com os seus reconhecidos méritos e competência. Estão em causa os métodos do primeiro-ministro. Está em causa a desqualificação do Governo e da Oposição.
Há dias, António Costa anunciou 400 milhões para combater as desigualdades que o ensino online evidenciou (adquirir computadores, conectividade e licenças de software, capacitar professores e desmaterializar manuais escolares). Vendedores de computadores, Porto Editora e Leya são claros e imediatos beneficiários. Em que medida o serão alunos e escolas, depende da coerência dos correlatos programas educativos. Quanto a professores, se os não libertarem das cargas brutas de trabalho burocrático sem sentido, não há “capacitação” que substitua a disponibilidade necessária para fazer uso didáctico de tais recursos.
Do mesmo passo, seria bom que António Costa tivesse reconhecido que foram os professores portugueses que pagaram do seu bolso a utilização dos recursos materiais de que necessitaram para participar no ensino de emergência que o Governo decretou, circunstância que não pode ser mantida no futuro. Com efeito, o Código do Trabalho, que na matéria é válido para os trabalhadores com vínculo público, dispõe que os instrumentos necessários ao uso das tecnologias de informação e de comunicação, em ambiente de trabalho, devem ser fornecidos pelo empregador, por cuja conta correm, ainda, todas as demais despesas a esse trabalho inerentes.
Para uns, a pandemia evidenciou a necessidade do ensino a distância. Para mim reiterou o que já sabia: o artificialismo deste tipo de ensino; que não há ensino sem escola física, sem aprendizagem viva, sem interacção presencial professor/aluno. Os recursos tecnológicos complementam mas não substituem as aulas presenciais. Podem tornar a interação professor/aluno mais dinâmica, mas nunca a podem dispensar.
O elogio que o ministro da Educação fez ao b-learning (uma mistura de aulas virtuais com aulas presenciais) justifica uma vigilância atenta. Podemos estar ante uma subtil tentativa para aliviar o peso da massa salarial no sistema de ensino, cavalgando a onda da restruturação de vários sectores da economia, que se seguirá. Numa eventual “normalização” do ensino online, cada professor corre o risco de ser transformado em mercadoria/produto, facilmente descartável ante o enganador brilho das máquinas.
(Negrito nosso)