Paulo Guinote
Prefiro “zero” a “alguma recuperação” porque toda esta discussão tem sido feita de um modo enviesado, truncado e com dados manipulados para intoxicar de forma consciente a opinião pública.
Leio na imprensa que nesta quinta-feira em que escrevo, a propósito da disputa em torno da recuperação do tempo de serviço docente, o senhor Presidente da República lançou a seguinte questão aos professores: “É preferível zero ou alguma recuperação?”
Não é meu hábito entrar num diálogo que está acima das minhas prerrogativas, mas como me dizem que isto ainda é uma democracia e como tenho cartão de cidadão e o senhor Presidente me parece pessoa afável, acessível e com sentido de humor, para além de não apreciar que outros respondam por mim, gostaria de lhe responder que por mim a resposta é, sem margem para dúvida, “Obviamente, zero!”, assim com exclamação enfática.
Não por intransigência, não por egoísmo “corporativo” (está na moda usarem-se termos deslocados do seu contexto, apenas para obter um efeito que se espera pejorativo), não por exacerbado “radicalismo” (lá está outro termo que anda muito maltratado), nem sequer por adesão acrítica a uma estratégia de “luta” sindical da qual discordo de forma bem clara.
Prefiro “zero” a “alguma recuperação” porque toda esta discussão tem sido feita de um modo enviesado, truncado e com dados manipulados para intoxicar de forma consciente a opinião pública. Há cinco meses, depois de uma ronda negocial de número indeterminado, escrevi que preferia nada receber como “bonificação” (o termo então usado pelos governantes envolvidos) do que me ser atribuída uma fracção do tempo de serviço que efectivamente prestei, fatiando assim a minha dignidade profissional e também pessoal.
O país passou por tempos duros, foram necessários sacrifícios? Sim, claro, e quase todos colaborámos. Os professores foram obrigados a prescindir de progressões durante quase dez anos, para além das sobretaxas aplicadas aos salários nominais, e ainda arcaram com parte significativa do “colossal” aumento fiscal. Ainda hoje, em tempos que dizem de reposição de rendimentos e reversão de políticas, recebo em termos líquidos menos do que há dez anos, quando estava dois níveis remuneratórios abaixo do actual. Por isso, considero demagógicas e realmente “populistas” diversas notícias em forma de opinião e opiniões disfarçadas como notícias sobre a falta de “justiça” das exigências dos docentes. Por isso, fui um dos elementos que apresentaram no Parlamento uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos para a recuperação integral do tempo de serviço docenteque muito tem sofrido às mãos da burocracia do regime parlamentar.
Já escrevi que o veto presidencial pós-natalício sobre esta matéria foi meramente sobre questões formais, tendo escapado à substância do problema e servindo apenas para ganhar (ou perder) tempo. Para além disso, embora agradecendo a mediação presidencial que obrigou o Governo a mais um par de inúteis rondas negociais, feitas sob a ameaça de tudo ficar na mesma por parte do actual primeiro-ministro, ficaria muito mais entusiasmado se o senhor Presidente usasse da sua influência para que se clarificassem questões que têm servido para que tudo isto seja discutido de forma errada, de que vou enumerar apenas três:
- Poderia o senhor Presidente pedir aos governantes responsáveis pelo estribilho dos 635 milhões de euros de encargos com a recuperação do tempo de serviço docente que apresentassem como foram feitas essas contas e o que desse valor é realidade de encargos e o que fica nos cofres do Estado como receita imediata?
- Poderia o senhor Presidente exercer o seu magistério de influência no sentido de certas argumentações usadas ao nível governamental para combater as reivindicações docentes não recorrerem a termos e conceitos deslocados do seu sentido original, como o de se alegar “equidade e justiça” para, na prática, se suspender um estatuto de carreira que está em vigor pela mão do mesmo partido agora no poder?
- Poderia o senhor Presidente, já agora e sei que vou ser algo provocatório, utilizar o mesmo tipo de questão sempre que os responsáveis por alguma instituição bancária apresentam o seu pedido de injecção de capitais na ordem das centenas ou milhares de milhões a que o Governo e o senhor ministro das Finanças acedem de imediato sem recearem derrapagem orçamental? Não, este não é um argumento “demagógico” ou “populista”, cuidemos da forma como usamos esses termos.
Para finalizar, queria apenas sublinhar o meu “Obviamente, zero!”, acrescentando que sou um simples professor do Ensino Básico sem preconceito ou complexo de o ser, não sindicalizado (hoje, ontem ou amanhã), apenas embaraçado pela forma como este país vai sendo.