Nem os jovens alunos querem reproduzir em suas casas o modelo escolar, nem o papel educador de pais se pode confundir com ministrar instrução, que apenas profissionais profissionalizados podem oferecer
Os nossos quotidianos, reduzidos a um confinamento inesperado e um isolamento social contranatura, levantam as maiores perplexidades no seio das famílias, novamente chamadas a ser o ator fundamental na consolidação das condições necessárias a uma eficaz contenção da propagação do coronavírus. Na realidade, o que se disse à população foi: recolha ao seu lar, deixe-se lá ficar quieto até que a pandemia passe; trabalhe de casa e ajude os filhos nas respetivas aulas que passarão a receber em computadores ou pela tv, ou seja, tecnologicamente mediadas.
Deste modo, instaurou-se um clima acentuadamente novo, diríamos mesmo um ambiente de inovação disruptiva (cf. C. Christensen, HBS). Os autores afamados desdobram-se em afirmações de que o mundo não voltará a ser como o de antes do período do COVID-19, uma vez que tudo está em mudança nas nossas vidas. O problema que nos ocupa – e preocupa – é o de como aproveitar a onda para pôr em causa um sistema social extremamente reativo a quaisquer inovações, nomeadamente aquelas que venham a exigir deslocações para fora de "zonas de conforto" por parte dos seus protagonistas que, cada qual à sua maneira, detêm algum poder parcelar sobre a empresa educacional.
Com efeito, a Educação organizada como sistema social, muda muito lentamente, caracterizando-se por ciclos longos que persistem, resistindo à mortalidade das reformas sucessivamente impostas por diktat central e raramente resultantes de inovações locais que sejam reconhecidas como positivas e escaláveis. Constatamos, assim, que os ajustamentos impostos por uma alteração radical de conjuntura, resumida no conceito de educação generalizada a distância, orientados no sentido de privilegiar questões verdadeiramente novas, e essenciais – aquelas que são suscetíveis de desencadear uma alteração paradigmática de fundo num modelo educativo que data, no mínimo, de há cerca duas centúrias –, se quedam manifestamente aquém do esperado.
Apontaremos, a este propósito, apenas três exemplos de um sentimento de acentuada frustração:
1. Vivemos uma oportunidade soberana de se repensar uma nova relação colaborativa entre pais e professores. Dito de outro modo, impor-se-ia perante os mega-desafios colocados pelo coronavírus o estabelecimento de um novo contrato social, envolvendo pais e professores na aposta decisiva de um diálogo fecundo e cooperante entre os dois grupos de educadores fundamentais dos jovens, a um tempo, filhos e alunos. Ora, o que se verifica é, tão só, grosso modo, uma transposição das aulas presenciais em sala de aula para aulas a distância na sala de jantar das famílias, esperando que os pais atuem como ajudantes dos professores na recepção e exploração das aulas por estes ministradas, através de programas informáticos importados apressadamente. Ora, nem os jovens alunos querem reproduzir em suas casas o modelo escolar, nem o papel educador de pais se pode confundir com ministrar instrução, que apenas profissionais profissionalizados podem oferecer, nem será o de partilhar conhecimentos que, muitas vezes não detêm ao nível do ensino especializado de matérias, os quais nem sequer lhes compete discutir. Acresce que, na sua grande maioria, eles nem têm a disponibilidade para o acompanhamento assíduo de filhos (aqui, acentuo o plural, onde o problema da disponibilidade parental mais se impõe, quando estão ambos os pais presentes, problema que é exponenciado no caso de crianças monoparentais lato sensu, que representam já cerca de 1/3 dos alunos no nosso país) assoberbados, eles próprios, com tarefas de adaptabilidade e de sobrevivência na crise pandémica e económica superveniente.
2. Num tempo de incerteza e de stress é evidente que são as populações mais jovens as atingidas, em força, pela instabilidade psíquica e por distúrbios emocionais acentuados. Neste particular, se tomarmos como certa a asserção de que nenhum estudo se pode desenvolver em condições tão adversas, e encontrando-se os próprios pais em "palpos de aranha" para explicar a filhos de tenra idade ou mesmo a pré e a adolescentes, as necessidades de confinamento, de supressão dos contactos com pares, de abolição de manifestações de afeto, e por aí fora, esperar-se-ia da parte dos educadores profissionalizados uma atenção especial a estas condicionantes de uma aprendizagem normal por parte dos seus alunos. Ora, onde estão as orientações para que os professores cuidem minimamente das condições de estabilidade psico-socio-emocional das crianças, do bem-estar dos seus formandos, ajudando pais manifestamente incapazes de sequer se aperceberem do problema vivido no seio das respetivas famílias, muito menos capazes de atuar em conformidade? Onde se encontram formuladas questões fundamentais a abordar no novo contexto educacional, tais como a superação de sentimentos negativos de ansiedade ou de medo, transmitindo às crianças e jovens um limiar mínimo de segurança e de confiança, ou a ajuda à percepção essencial de que a situação de crise será ultrapassada a prazo, mas que tal desenlace dependerá da adoção de comportamentos de proteção pessoal e de solidariedade perante os demais, passando pela explicação da necessidade de regras sanitárias mínimas ou mesmo pelo doseamento inteligente do acesso a equipamentos informáticos para jogos ou redes sociais vs. o tempo de acesso a essas máquinas para receberem aulas a distância e para estudo ou TPC, etc.?
3. Por último, sublinhamos que o momento que atualmente vivemos é altamente propício à superação do modelo educativo rotineiro do passado, assente numa diluição de características individuais em favor de uma personalidade grupal, que é cómoda à organização escolar ainda prevalecente. É decorrido mais de um século desde as teorias pedagógicas, ainda dominantes nos nossos sistemas educativos, de Thorndike, de que importa ensinar pela repetição e pela prática (drill and practice), ao invés de tudo o que a investigação pedagógica recente vem revelando (cf. Vygotsky e Bruner), designadamente quanto à necessidade de uma maior personalização das aprendizagens, assente numa despistagem aturada de estilos e de preferências diversas. evidenciáveis por cada aprendente. Dito de outro modo, estamos a perder a grande oportunidade de inovar nos métodos, aonde o sujeito se imponha ao objeto das aprendizagens, onde a pessoa prevaleça sobre o conhecimento e as competências que se pretende sejam adquiridos ou transmitidos, aproveitando-se para optar por modelos já consagrados por experiências de sucesso levadas a cabo, pontualmente, em Portugal, como noutros contextos educacionais, designadamente implementando os andaimes de ajuda à autoaprendizagem (scaffolding) ou a tutoria contingencial (contingency tutoring). Em resumo, uma mudança que privilegie o foco da aprendizagem ótima sobre a simples melhoria das práticas de ensino que são todavia, reconhecidamente, uma forte condicionante daquela.
Concluímos, apesar de tudo, com uma nota de esperança: a de que, apesar de toda a resistência à mudança ínsita nas estruturas fundamentais da Educação, será possível convocar o conjunto de boas vontades e de lideranças, capazes de encaminhar o país para um novo paradigma educativo, assente em pressupostos transformadores, radicalmente diversos dos do passado próximo. Mais direi, uma expectativa de que as transformações a introduzir aumentarão a inclusividade do sistema educativo numa sociedade ainda marcada por profundas discrepâncias socio-económico-culturais das suas populações, situação estrutural persistente entre nós, a qual exige uma alteração paradigmática da Educação, que ativamente combata a desigualdade ao invés de contribuir para o seu alargamento sistemático.
Portugueses, é a hora! Aceitamos todos o desafio?