Num período em que muitas famílias contam tostões em casa para fazer face a todas as despesas, há quem se regozije com inaugurações, primeiro de escolas, depois de unidades hospitalares, a seguir de estradas e autoestradas. Esperemos pelas futuras, para não recordar os estádios de futebol do passado. Obras e obras feitas e a serem feitas, sem dinheiro…. São obras dignas, claro, e muitas fazem falta. Mas há o outro lado da questão: quem as vai pagar? Legítima pergunta, esta, dado que os tostões das famílias não chegam para tanto.
A dignidade de uma obra não vem da ação do governante que a manda construir ou a inaugura, principalmente porque não é ele quem a constrói ou paga os bons materiais que uma qualquer empresa de construção escolhe, se for do Estado. Por exemplo, não se creia que a dignidade de uma escola vem do material que reveste teto, chão e paredes. Obviamente que ele tem de ser resistente, mas antes do pormenor da estética, estão as suas mesas e cadeiras ajustadas à aprendizagem, as salas de aula com luz, quadro, cadeiras, carteiras e algum material informático, laboratórios e bibliotecas sérias, pavilhões desportivos dinâmicos, com uma estrutura sólida para fomentar a paixão dos alunos pela atividade desportiva – quando o desporto é saúde e alegria de viver. A dignidade da escola vem do trabalho consistente desenvolvido, da cordialidade e confiança entre direção-alunos e direção-encarregados de educação, da motivação intrínseca e extrínseca dos seus agentes, da vontade de ensinar e de aprender, dos valores desenvolvidos, do projeto educativo aplicável aos interesses dos indivíduos…
Por isso é incompreensível o excesso de prazer em dizer aos outros, na inauguração de uma obra pública, fui eu que construí esta escola portuguesa, e esta ponte e esta autoestrada e este grande edifício e mais este e este. O seu nome fica na lápide, o seu sorriso na TV, o feito no Facebook e a esperteza no inconsciente dos portugueses, que terão de pagar as construções até à velhice, continuando a estafeta com os filhos e netos.
A nossa História conta-nos que sempre assim foi. O ciclo repete-se incessantemente. Só sabemos dizer mal e ninguém procura mudar o que parece ser obra do Destino, este feroz traidor que está sempre do lado dos governantes. Um exemplo destes é D. João V. Quis, pois, o Destino que ele sonhasse em construir, no século XVII, o Convento de Mafra. Conseguiu-o, claro, como não poderia deixar de ser. Nos livros de História, é hoje acusado «do esbanjamento dos abundantes recursos auríferos e diamantíferos oriundos do Brasil» (Medina (Dir.) 2004. História de Portugal. Amadora: SAPE; Vol. IX: 121). E depois? Já cá não está para pagar a dívida. Na literatura, a sua imagem não é melhor. Reza a ficção que o guarda-livros disse a el-rei, em Lisboa, depois de este ter colocado “com as reais mãos a primeira pedra” do convento de Mafra, o seguinte: “Saiba vossa real majestade que na inauguração do convento de Mafra se gastaram, números redondos, duzentos mil cruzados, e el-rei respondeu, Põe na conta, disse-o porque ainda estamos no princípio da obra, um dia virá em que quereremos saber, Afinal, quanto terá custado aquilo, e ninguém dará satisfação dos dinheiros gastos, nem faturas, nem recibos, nem boletins de registo de importação, sem falar de mortes e sacrifícios, que esses são baratos” (Saramago 2007. Memorial do Convento. Lisboa: Caminho, pp.143).
Hoje pergunta-se por que razão Portugal ergueu um convento tão grande e com tão nobres materiais europeus, à custa do esbanjamento de tanto ouro, quando este poderia ter ido para a agricultura e comércio, que é o que alimenta o povo. É óbvio que delicia os visitantes, mas também simboliza a vaidade do rei, que infelizmente não pagou nem pagará a fatura. O mesmo se passará daqui a uns anos, quando olharmos para as nossas construções de luxo, hipotecadas até mais não, símbolo de um Portugal moderno. O betão é importante, mas dele não nasce qualquer cultura, nem a que alimenta o corpo nem a que incrementa a mente dos portugueses. Há sempre uma exceção, claro: alimenta o ego do vaidoso, assim nado por obra do Destino. Tem desculpa hoje, como sempre teve.
Inês Silva - Correio da Educação