O facilitismo do meu 8.º ano e a minha “não retenção” a matemática fez de mim um ignorante. O meu obrigado ao Tiago Brandão Rodrigues daquela escola
Na sua monumental alegoria das “Viagens de Gulliver”, Jonathan Swift não nos apresenta, apenas, a ilha de Liliput e os liliputianos. Na sua viagem ao país governado por cientistas, sábios e filósofos, Balnibarbi, Gulliver demonstra como a teoria pode tornar-se um monte de cacos, quando confrontada com a realidade. As decisões dos dirigentes de Balnibardi, assentes em estudos bem informados, revelam-se um total fiasco, contribuindo para a existência de uma sociedade absurda, de onde o sentido prático – e o senso comum – estão totalmente ausentes. Entre outras atividades, a Grande Academia de Lagado, na Balnibarbi de Jonathan Swift, gasta inúmeros recursos e mão de obra em experiências absurdas, como a de tentar extrair raios de sol a partir de pepinos. O resultado, claro, é o caos administrativo e social.
Esta semana, no debate quinzenal, no Parlamento, o primeiro-ministro, António Costa, foi confrontado com a decisão, “assente nos estudos pedagógicos mais informados”, de acabar com as retenções até ao 3.º ciclo. As retenções, aqui, são um eufemismo – e como o Ministério da Educação gosta de eufemismos, começando por chamar “comunidades educativas” às escolas! - para reprovações, ou, mais em linguagem de “senso comum”, para os “chumbos”. Em resposta a Rui Rio, e depois de muito se enrolar em argumentos não demonstráveis, Costa acabou por tentar fugir, empurrando o tema para um debate específico, a decorrer no futuro. Antes disso, acusou Rui Rio, imagine-se, de se guiar pelo “senso comum”. O elogio, raro entre adversários políticos, foi proferido como se fosse uma crítica , o que, logo na sua premissa, é uma intenção totalmente destituída de “senso comum”... Costa advertiu para os “perigos” de se tomarem decisões políticas baseadas no senso comum, em vez de se tomarem “decisões informadas”. Na verdade, onde o primeiro-ministro queria chegar, é que o senso comum, pelo menos neste caso, tem laivos de populismo.
Ora, é precisamente o divórcio entre o politicamente correto bem informado e o que as pessoas pensam e experimentam na sua realidade quotidiana que abre caminho ao populismo e às forças populistas. É verdade que, na sua perversão, estas forças apelam para instintos básicos e sentimentos negativos: o medo, a intolerância, o egoísmo e a violência. Mas o seu truque fundamental e receita de sucesso está na facilidade que têm em identificar o que se designa por senso comum – distorcendo-o para atingir os seus fins insensatos. Ao afastarem-se desse denominador universal, porque não andam de autocarro nem ouvem o homem da rua, os políticos democráticos perderam terreno e mercado eleitoral para essas forças oportunistas – oportunistas, no sentido em que aproveitam a oportunidade que lhes é deixada.
E quanto à matéria de facto, o fim dos chumbos nas escolas? Rui Rio, como, depois dele, Cecília Meireles, do CDS, apenas quiseram saber o seguinte: Quem não sabe passa ou reprova? É uma pergunta simples que exige uma resposta de sim ou não. Mas o primeiro-ministro, tal como o ministro da Educação, são incapazes de responder. Porque, se calhar, também não sabem bem. Cheira-me, aliás, que esta decisão, tomada em bravata, vai tornar-se uma espécie de “Infarmed no Porto”, take 2…
Numa fuga para a frente, o Governo promete algo com que toda a gente concorda: é preciso apoiar os alunos que têm mais dificuldades, para que “ninguém fique para trás”. Mas este estribilho, que ficaria bem num cartaz de propaganda, tem muito que se lhe diga. As intenções são as melhores: evidentemente que esses alunos devem ser ajudados. A questão está em saber como. O Estado vai contratar uma segunda vaga de docentes, duplicando os já existentes, para providenciar, em todas as matérias curriculares, explicadores para todos, em horário extra? Ou vai exigir a professores já à partida desmotivados – e não apenas pela não reposição integral do rendimento que lhes foi cortado… -, acossados por cenas quotidianas de violência, pressionados pela indisciplina nas aulas e por carregados de educação violentos e impunes, por horários sobrecarregados do trabalho que levam para casa e a braços com os seus próprios problemas familiares (também têm filhos) que deem ainda mais o litro? O Governo propõe-nos um milagre? já agora, em que países ou realidades pedagógicas foram realizados esses estudos? Fizeram-se num quadro igual ao da realidade portuguesa, com professores exaustos e desmotivados, miséria social ao virar da esquina, indisciplina insuportável, escolas com placas de amianto?... Os estudos são transponíveis para Portugal?
E, supondo que a tarefa impossível de ajudar todos os alunos em risco de “retenção” a terem bons resultados era mesmo realizável, o que fazer aos que, mesmo assim, não obtivessem sucesso? Transitavam de ano também? E os que faltarem às aulas? Não chumbam por faltas? António Costa explicou que todos os estudos (voltamos a eles) na área da pedagogia indicam que a retenção provoca mais retenção e que os chumbos são contraproducentes para a melhoria dos resultados curriculares. Ou seja, quer convencer-nos de que quem não sabe e passa, passa a saber. E que quem repete a mesma matéria até a aprender... jamais aprenderá.
É aqui que entra o senso comum. O senso comum não está fechado em gabinetes a analisar estatísticas. O senso comum sabe que alunos de 12 anos, se puderem, preferem não estudar, porque a escola é uma seca. O senso comum intui que os encarregados de educação preocupam-se mais se tiverem medo que os seus filhos falhem. O senso comum pressente que os professores tenderão a relaxar, se tiverem de aprovar toda a gente. O senso comum baseia-se no conhecimento da natureza humana, que só reage a estímulos do tipo prémio versus penalização. É isto mesmo: ao contrário dos teóricos, o senso comum conhece a natureza humana.
Dando de barato que professores motivadíssimos e imbuídos do mesmo espírito missionário do senhor ministro estariam disponíveis para a tarefa. Que teriam tempo, disponibilidade mental, as circunstâncias e os meios para passarem ainda mais horas a ministrar ensino personalizado e a la carte a este e àquele aluno em dificuldades – e o conseguiria fazer sem negligenciar os restantes: pode a aprendizagem em idade escolar ser a única atividade humana que funciona sem o estímulo do chicote e da cenoura? Deve a escola ser um perpétuo recreio ou, pela exigência do esforço e do trabalho, é mesmo suposto que, de quando em vez, seja uma seca? Será que queremos formar cidadãos sem preparação para as muitas secas da vida futura? Aprender a lidar com o stresse (por causa de exames, por exemplo) não deve fazer parte da formação da criança?
Mas isto não é ainda o principal. O principal é saber se, de facto, alunos que não aprenderam o A, conseguem juntar A+B. A experiência pessoal de cada um de nós falará por si. E eu falo da minha. Eu era um excelente aluno de matemática, desde a aritmética da escola primária ao final do primeiro ciclo do meu tempo (5.º e 6.º anos de escolaridade). Mas ali algures entre o 7.º e o 8.º, perdi o fio à meada e não consegui acompanhar a matéria. Ainda assim, sem saber como, apanhei uma professora que passava toda a gente, soubesse ou não soubesse. Cheguei ao 9.º ano, e não só não consegui entrar na matéria – faltavam-me noções básicas -, como tomei a decisão de me livrar o mais rapidamente possível da disciplina, passando “cortado” a matemática e “fugindo” para Humanísticas. Poderia, é certo, como “aluno em dificuldades”, ter tido um “acompanhamento especial”, logo no 8.º ano. Mas, garanto que, aos 14 anos, se me dissessem que iria passar de qualquer modo, jamais me empenharia em aproveitar tal “acompanhamento”… O que devia mesmo era ter repetido a disciplina, no 8.º ano, uma e outra vez, até apreender as competências necessárias para progredir. Estaria, então, em condições de frequentar o 9.º ano, lutar, de novo, por ter aproveitamento e, quem sabe, construir um futuro nas ciências exatas. O facilitismo do 8.º ano, a minha “não retenção”, fez de mim um ignorante. O meu obrigado ao Tiago Brandão Rodrigues daquela escola.
Suponhamos, por um minuto, que um aluno de 14 anos, em dificuldades, tem garantido, por parte do sistema público de ensino, um “acompanhamento especial”. Terá sucesso? Eventualmente. Mas também pode não ter. Quem o garante? O que é mais provável? Cumprir-se a tese do Governo que acha que a igualdade de oportunidades fará de todos os alunos uns génios, ou a dura realidade, que nos diz (deixando, de vez, o politicamente correto) que continua a haver inteligentes e “burros”, ou, pelo menos, alunos que se esforçam, e outros que serão sempre preguiçosos – com motivação ou sem ela? Suponhamos que esta política vale a pena, e tem sucesso. Mais: que, como o Governo promete, todos terão sucesso e “ninguém ficará para trás”. Mas então, se tiverem sucesso, não é necessária uma decisão administrativa a determinar que não haverá retenções! Elas deixarão de existir, naturalmente! Ou seja, se formos suficientemente ingénuos para acreditar na exequibilidade das boas intenções do Governo, o Governo não precisa de decretar a impossibilidade de retenção dos alunos! É a própria evolução deles que fará com que progridam! Ou seja, a medida anunciada, o fim das retenções, é absurda, nos próprios termos das explicações do ministro e do primeiro-ministro.
É do senso comum, e o senso comum deriva da prática, que ninguém consegue adquirir conhecimentos mais avançados antes de adquirir os básicos. Ninguém entende a matemática sem saber aritmética. Ninguém apreende conceitos elaborados sem aprender a ler, escrever e contar. Não se começa pelo telhado. Acabar, administrativamente, com a retenção, é nivelar por baixo, dar um sinal de facilitismo e de desleixo e, sobretudo, prejudicar aqueles que primeiramente deveriam ser beneficiados: os alunos. A mim, prejudicaram-me, no 8.º ano. Não se passa para o nível seguinte sem ter passado pelo anterior. E nisso, os vídeo jogos são uma boa metáfora da vida.
Já que não tem outros argumentos, António Costa despreza o “senso comum”, que considera perigoso, em favor de decisões “bem informadas” que, essas sim, são benignas. Esta argumentação é que é perigosa, por entroncar numa fragilidade que decretou a derrota do socialismo científico: eles é que sabem o que é melhor para o povo. O Ministério da Educação é a vanguarda revolucionária! Se não resultar, siga-se o conselho de Bertolt Brecht: dissolva-se o povo e eleja-se outro.
A propósito de estudos científicos e de “decisões informadas”, o grande economista americano Robert Solow dá um conselho aos seus pares: “Têm de adaptar o vosso modelo ao mundo, não o mundo ao vosso modelo.” A dica bem pode aplicar-se ao nosso Ministério da Educação, que, no seu experimentalismo, por vezes, parece viver na Balnibarbi de Jonathan Swift, ocupado em tentar extrair raios de sol a partir de pepinos.