Santana Castilho - Público
Limpo de ruídos, o presidente do conselho científico do Iave disse em Coimbra, no passado dia 16, que o Ministério da Educação e Ciência condiciona o Iave, preordenando o resultado dos exames. E da teoria passou à prática, dando exemplos, bem claros, de como se faz. Não retomo esses exemplos porque podem ser lidos na edição do PÚBLICO de 17 de Maio.
O que se passou é particularmente grave e a suspeita está aí a enlamear os exames que acabaram de começar. Não conheço os termos da “encomenda” senão por discurso indirecto. Mas conheço o que é público sobre a lastimável actuação do Iave.
O Iave, na proclamação falha de sentido de Nuno Crato, seria uma instituição independente da tutela do próprio ministério, a quem incumbe a avaliação externa do sistema de ensino. Ou seja, o ministro pensou que agarrando exactamente na mesma tralha que constituía o GAVE (o art.º 27.º do diploma constitutivo fixa como critério de selecção do pessoal do Iave o desempenho de funções no anterior GAVE), bastava rebaptizá-la para que nós a engolíssemos como independente. Com membros do conselho directivo designados por resolução do Conselho de Ministros, sob proposta dele próprio (art.º 9.º do DL n.º 102/2013). Com um conselho geral outra vez designado sob proposta dele (art.º 13.º). Pago pelo Orçamento do Estado. Sendo isto um embuste, é intolerável a desfaçatez que o refina, à vista de todos.
A história do Iave é um sucedâneo de erros inaceitáveis, sistematicamente denunciados, sem consequências, por associações profissionais e científicas. Recordo, por paradigmático, o exame de Português do 12.º ano, de 2013, onde as respostas referentes à análise e interpretação de um poema de Ricardo Reis ou cabiam num kafkiano conjunto de 15 páginas de “critérios específicos de classificação”, que prescreviam e previam tudo, partindo do princípio que os professores classificadores eram mentecaptos, ou o aluno seria simples vítima, sumariamente imolada na pira da justiça infalível do Iave. Como se os inquisidores, autores daquela aberração, fossem proprietários do superior espírito de Pessoa e tivessem a incumbência divina de impedir a mediação profana dos professores, remetendo-os para o papel de meros autómatos classificativos. E recordo como o Iave, com a justificação de uma certificação desnecessária e subserviente, quase única no mundo, forçou recentemente professores a faltarem em massa às aulas para trabalharem gratuitamente para a Cambridge English Language Assesment, uma organização estrangeira que promove a preponderância de uma língua de negócios, num processo dúbio, actualmente sob investigação da brigada anticorrupção da Polícia Judiciária.
Organizar o currículo à volta dos resultados dos exames instrumentalizou o conhecimento, padronizou as práticas pedagógicas e, conjuntamente com a introdução do “dual”, serviu na perfeição o objectivo primeiro deste Governo: mercantilizar e elitizar o ensino. A fé que alguns loucos têm na objectividade está para a Escola como os martelos do Estado Islâmico estiveram para as relíquias do museu de Mosul. Ao instituírem um sistema de controlo em cascata, subserviente ao poder esotérico do panóptico Iave, em que cada instância compete com quem devia cooperar, produziram uma ideologia que se exprime numa orgia de grelhas, relatórios e rankings e desconhece simplesmente que tal política destrói a relação natural e a mediação pedagógica entre aprender e ensinar. A cabeça de Nuno Crato está capturada pela aritmética política de um ministério de índices, estatísticas e classificações, que jorram do Iave. A inteligência do ministro não percebe Portugal e a sua cultura, é avessa às humanidades, está calibrada para a produção de metas grotescas, em número e em qualidade, e gerou uma Escola examocrática, onde não há tempo para reflectir sobre o que se ensina e cimentar o que se aprende, tensa, insustentável, alienada e ditatorial, que desvirtuou os valores da aprendizagem, numa palavra, infeliz.
Os exames têm uma função importante para relativizar e validar classificações em finais de ciclos de estudo. Mas introduzidos precocemente, para crianças sem maturidade psicológica adequada, podem ser um instrumento de exclusão social. Em matéria de exames o nosso sistema de ensino reprova. Porque o objectivo da Escola é cada vez menos ensinar e cada vez mais examinar, numa paranóia que leva os pais a recorrerem, em crescendo, a centros de estudo e explicações para crianças com dez anos, onde se repetem simulações de exames nacionais ao longo do ano. Tudo isto numa Europa a que pertencemos, mas onde só encontramos par na Bélgica e na Turquia.
Público, 20/05/2015
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