sábado, 17 de dezembro de 2016

A opinião de Santana Castilho

Santana Castilho - Público

Guterres tomou posse como secretário-geral da ONU. Ronaldo arrebatou outra Bola de Ouro. Cada família portuguesa vai gastar neste Natal 359 euros, diz a Deloitte, e Marcelo vai beijar as 207 crianças que nasceram ontem, prognostico eu. Que importa que no mesmo dia tenham morrido 284 portugueses? Que importa que a Der Spiegel diga que Ronaldo subtraiu 150 milhões ao fisco? Que importa que as contas da Deloitte sejam o resultado de uma média que junta os gastos obscenos de poucas famílias aos gastos miseráveis de dois milhões de pobres? Que importa tudo isso e quem sou eu para contrariar a euforia deste nosso modo bipolar de viver? Mas a festa dos pais apressados dos resultados do PISA, essa, tenho que a contraditar. 

Quando toca a hora de colher louros, é enternecedor ver ex-ministros, que se digladiaram e reclamaram autores de teses opostas, aceitarem que as suas políticas, juntas, produziram bons resultados. O paradoxo talvez se resolva se trocarmos as premissas da equação. Se em vez do “graças a Lurdes Rodrigues” ou do “graças a Nuno Crato”, dos prosélitos, tentarmos os bem mais certos “apesar de Lurdes Rodrigues” e “apesar de Nuno Crato”. 

Ambos escreveram artigos sobre os resultados do TIMMS e do PISA (DN de 7/12). Antes de se porem em bicos de pés, qual casal modelo, pais apressados do sucesso alheio, eles que humilharam, acusaram, denegriram e prejudicaram os professores como ninguém, tiveram o topete de lhes tecer, agora, rasgados elogios. Que pouco decoro! 

Lurdes Rodrigues, passando de fininho pela “festa” da Parque Escolar, pelo deboche das Novas Oportunidades e pelos milhões que os Magalhães deitaram ao lixo, lembrou o Plano de Acção para a Matemática, mas esqueceu que teve contra ela 100 mil professores. 

Nuno Crato pôs de lado a tese da década perdida e escreveu que os factores mais importantes que explicam os progressos dos resultados do PISA de 2012 para 2015 foram: “novos e ambiciosos objetivos curriculares - as metas curriculares - e novas avaliações - as provas finais nos 4.º e 6.º anos de escolaridade.” Ora se atendermos ao facto de os exames dos 6º e 4º anos terem sido introduzidos, respectivamente, nos anos lectivos de 2011/12 e 2012/13 e tivermos presentes as características da amostra usada nos testes do PISA 2015, podemos afirmar que nenhum aluno que a integrou foi submetido a qualquer dos exames invocados, pelo que é aberrante atribuir-lhes impacto nos resultados. No que toca às metas (veja-se o calendário estabelecido no DR nº 242, 2ª série, de 14/12/12) e ainda que se admitisse o efeito “tiro e queda”, o que em Educação é grotesco, elas nem chegaram a tocar um quarto dos alunos que prestaram provas em sede do PISA 2015. 

Referindo-se às metas, escreve, ainda, que “foram centradas no conhecimento e não em "competências" vagas e impossíveis de avaliar.” E linhas á frente, sobre o PISA (que é construído e desenvolvido para avaliar competências, note-se bem), diz que “os documentos do estudo PISA são muito ricos.” Por fim, cereja no topo do escrito, afirma que o estudo permite “também perceber que as vias vocacionais tiveram um papel decisivo”, quando o que o relatório do PISA diz é que a orientação precoce dos alunos para percursos vocacionais é perniciosa para a aquisição de competências básicas essenciais. 

Ligeireza? Desonestidade intelectual? Só ele saberá. Se é que sabe! 

A modéstia e a humildade seriam prudentes se estes dois carrascos dos professores, finalmente, se tivessem enxergado e entendido que o acontecimento a celebrar é simples e exprime-se assim: apesar do aumento desmesurado das cargas de trabalho, do congelamento das carreiras, da perda de salário, de um ambiente institucional burocraticamente opressivo e inútil e das repercussões na disciplina escolar da degradação social de muitas famílias, os professores portugueses, com dignidade e responsabilidade profissional ímpares, aguentaram, não abandonaram os seus alunos e fizeram-nos progredir. 

Em nome do crescimento, da eficiência e da eficácia, os instrumentos transnacionais de avaliação comparativa têm-se vindo a constituir como autoridades veneráveis e únicas, que paulatinamente unificam práticas e reduzem culturas e contextos díspares a estereótipos modais e à mesma escravatura de resultados, ao alcance de um clique. 

Mas se um clique basta para aceder a séries estatísticas, nenhum clique chega para as explicar e interpretar, muito menos para as desconstruir, enquanto instrumentos de poder e controlo social. 

Sim, o nosso sistema de ensino passou à frente da Finlândia no Olimpo da OCDE. Que nos afaguem pois o ego, mas não nos ceguem, os resultados do TIMSS e do PISA. Porque os nossos progressos estão colados a muito mais aulas para aprender o mesmo que os outros aprendem em menos aulas (temos 275 horas anuais em Matemática, que comparam com uma média de 157 nos países que foram avaliados pelo TIMSS e com as 100 da Coreia do Sul, terceira classificada). Porque o número de estudantes portugueses que já reprovaram um ano ultrapassa os 30% na amostra que se sujeitou ao PISA, enquanto a média da OCDE se fica pelos 13%. Porque, acima de tudo, estes programas deixam de lado todas as vertentes humanistas, morais, cívicas e artísticas dos sistemas de ensino (Andreas Schleicher, director do PISA, foi claro quando disse que o programa pretendia medir quanto “value for money” resulta dos sistemas de ensino em análise). Porque, em limite, o excesso de fé nestes programas pode estar para a educação integral das nossas crianças como os martelos do Estado Islâmico estiveram para as relíquias do museu de Mosul. 

2 comentários:

  1. Excelente texto!

    Há dias assim.

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  2. Excelente, como sempre senhor Doutor Castilho. Como sempre, sacudiu as teias de aranha e o pó que obscurece o verdadeiro significado da propaganda fundamentalista neoliberal que defende o PISA e afins. De facto, tenho várias vezes afirmado que o PISA é redutor na avaliação (de facto nada avalia, mas apenas faz estatística propagandística à maneira das estatísticas na antiga URSS), prejudicou em muito o ambiente e as condições de trabalho e de aprendizagem nas escolas. Os alunos portugueses têm demasiadas horas de trabalho na Escola. Em parte é verdade, demasiadas horas a engolir os enormes sapos do Português e da Matemática, pois precisam de ficarem amestrados para quando se der o Show dos exames e provas de aferição que mais não servem do que para atirar vaidades numa fútil feira de aparências interestatais. Acabem com esta porcaria do PISA, devolvam as horas letivas que tiraram, por causa do PISA, às disciplina de História, Educação Visual e Educação Física. Deixem os alunos aprenderem e os professores fazerem o seu trabalho em condições condignas de segurança e de esperança. Parabéns pelo excelente texto senhor Doutor. Como sempre, desmascara a propaganda governamental...

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