Carmo Machado
"Paguei milhares de fotocópias do meu bolso, realizei visitas de estudo fora do meu horário de trabalho, fiz trabalho de secretaria que não me competia, levei de casa materiais que eram meus, imprimi com os meus próprios tinteiros centenas de testes, carreguei às costas o meu próprio projetor". O desabafo da professora Carmo Machado sobre o chumbo da recuperação total do tempo de carreira dos docentes
Dei trinta anos da minha vida à escola pública. Trabalhei em salas sem janela em pleno Inverno, percorri descampados sob chuva para chegar à sala de aula, paguei milhares de fotocópias do meu bolso, realizei visitas de estudo fora do meu horário de trabalho, fiz trabalho de secretaria que não me competia, levei de casa materiais que eram meus, imprimi com os meus próprios tinteiros centenas de testes, carreguei às costas o meu próprio projetor pago a prestações, no tempo em que as escolas não os tinham. Dei, dei, dei... E o que recebi de volta?
Para começar, a escola ofereceu-me quase todos os anos - sem que eu pedisse - uma reforma curricular. Serviu-me indisciplina numa bandeja à discrição e agora, para cúmulo deste descalabro, quer retirar-me, apagando, cinco anos do meu trabalho.
Quando, no dia dois de maio entrei na escola, senti no ar um aroma de esperança e havia sorrisos nos rostos. Embora muitos professores desconfiassem da decisão parlamentar entretanto tomada, por acarretar várias piruetas políticas, a verdade é que pairou nesse dia sobre nós uma lufada de ar fresco. Durou pouco. A rejeição às alterações do decreto do Governo (que pretendiam consagrar a devolução de todo o tempo de serviço congelado aos professores pela Assembleia da República) veio oito dias depois e deu o golpe final a uma classe entristecida. Para muitos de nós começou nesse dia o princípio do fim. Nunca ouvi um professor exigir a devolução imediata deste tempo de serviço, muito menos o seu pagamento de forma abrupta. Se os nossos políticos conhecessem verdadeiramente os professores de Portugal, saberiam que mais importante do que o dinheiro seria o reconhecimento da importância da nossa profissão. Não apenas e durante as campanhas partidárias mas sobretudo fora delas. A paixão pela Educação é apenas nossa, dos professores que dedicaram toda uma vida à escola pública e aguardam com sofrimento diário que os períodos passem e os anos mudem... Ou dos jovens professores – vejo exemplos disto diariamente - que entregam toda a sua energia à escola e aos seus alunos. Dia dez de maio, eu senti-me escurecer. Mesmo que nos fossem devolvendo o tempo de serviço aos bochechos, até à reforma, não me importava. O país pode ter evitado uma crise orçamental mas eu duvido que tenha evitado a desmoralização de uma classe já de si desmoralizada porque transformada no joguete de políticos, da opinião pública, das famílias e, last but not the least, dos alunos.
Guardo na memória as palavras de uma colega que, à beira de uma reforma antecipada (com forte penalização monetária), olhou para mim e disse:
- Vou-me embora, sim. Não aguento mais isto. Deixei de fazer amor com a escola. Agora só já fazemos sexo...
E eu sinto que passarei a fazer exatamente o mesmo. Serei menos profissional a partir de agora? Não me parece. Menos romântica, talvez. Guiar-me-ei mais pelos números e menos pelo coração. Farei contas às horas, contabilizarei os recursos gastos no desempenho da profissão e pouparei toda a energia e todos os euros que for possível poupar. Se a partir de agora, todos nós contabilizarmos as horas dedicadas ao desempenho da nossa profissão fora dos nossos horários letivos, evitaremos certamente uma crise pessoal pois teremos recuperado um pouco do que há muito já perdemos: a nossa dignidade.
Acabou-se a poesia.
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